A cidade que odeia suas raízes

É preciso entender a cidade como um espaço vivo de interação social e capaz de nos conectar diretamente com o nosso bem estar físico e emocional. Uma cidade que busca ser um polo turístico precisa, necessariamente antes de tudo, ser uma cidade que proporcione qualidade de vida aos seus moradores. Isso é o beabá dos estudos sobre Turismo. 

Foto Documental Oficina de Arte e Ativismo: Gaby.

Como buscar ser uma cidade inteligente e saudável se cortamos nossas árvores antigas? Como pensar o futuro pós pandêmico com esses tipos de ações drásticas em espaços públicos? Os espaços públicos são vivos e provocam diferentes sentimentos em nós: ansiedade, tranquilidade, raiva, preguiça, afeto, carinho, paz, etc. As intervenções nesses espaços também provocam esses diferentes sentimentos, e por nos afetar diretamente, precisam ser mais estudadas, qualificadas, debatidas e questionadas.

Os números de arborização em vias públicas em São Miguel Arcanjo estão entre os mais baixos do Estado de São Paulo. Das 645 cidades de SP, a nossa ocupa a posição 580 em quantidade de árvores em ruas, praças, etc.; e dentre as 6 cidades da nossa região, ocupamos a última posição. Mesmo vivendo à beira de uma mata considerada patrimônio mundial pela UNESCO, somos a cidade com menos árvores em vias públicas da região em que estamos inseridos. A arborização, que está diretamente ligada à saúde e ao bem estar de qualquer população, além de ser um patrimônio afetivo, histórico e cultural de um povo, não é levada em consideração pelas políticas públicas locais.

A praça da matriz é um exemplo disso. Ela é um espaço com valores sentimentais e afetivos para diferentes gerações. É e sempre foi um local de encontro, de lazer, de descanso, de espera, e isso perpassa as gerações. É algo nosso e ao mesmo tempo de ninguém, não tem dono ou um representante capaz de decidir sozinho, de maneira autoritária, sobre o que é feito ali. Todas as modificações realizadas ao longo dos últimos anos nos afetou e afeta, e é por isso que tudo o que é feito em um espaço tão precioso para nós, é preciso ser feito, mais uma vez, com estudo, conhecimento e debate. 

Os motivos dos cortes das duas árvores da praça não são justificáveis para quem pensa o futuro, a qualidade de vida e do ar, o bem estar, o afeto e a estética de um espaço vivo. Para os responsáveis, seguros de que suas ações são as melhores, os motivos, para eles, são racionais e práticos: as árvores saíram de onde estavam porque, além de serem exóticas, algumas pessoas tropeçaram em suas raízes e porque estavam atrapalhando a fiação elétrica que passa pelo outro lado da rua. 

Foi essa a justificativa dada a nós pela Secretaria de Meio Ambiente sobre os cortes, mais uma vez em nossa cidade, de duas árvores centenárias. Os dois primeiros motivos seriam resolvidos facilmente com um pouco de boa vontade. O último, o fato de serem exóticas, não exclui o valor e a importância histórico-afetiva-cultural e patrimonial que possuem para a cidade e sua população. E ao alegarem o exotismo das árvores, talvez tenham se esquecido de que as centenas de ciprestes italianos plantadas por eles mesmos para paisagismo em diversos cantos da cidade, também são exóticas e que, diferente das que foram arrancadas, não nos significam nada culturalmente, não fazem sombra e não atraem pássaros e vida. 

Ao que me parece, a cidade odeia as suas raízes. Tanto as que fazem a gente se sentir pertencente a um território, quanto as raízes das árvores que estão aqui há mais tempo que nós, mas que por atrapalharem o nosso andar míope, apressado e desatento, podem ser facilmente removidas. A cidade de interesse turístico, segue sem interesse para com os seus, sua história e sua cultura.

Foto Documental Oficina de Arte e Ativismo: Gaby.

*Na Oficina de Arte e Ativismo, mediada por Débora Fernandes, dialogamos sobre as performances artísticas de Uyra Sodoma, uma entidade indígena em carne de bicho e planta, uma árvore que anda, uma árvore que caminha pelo mundo denunciando os ataques cometidos contra a natureza, contra a fauna e a flora. Sobre os ecos da obra de Sodoma, o coletivo da oficina foi convidado a criar fotografias documentais que questionam o fato trágico de duas árvores Ficus Benjamina gigantescas e belíssimas terem sido cortadas na Praça Matriz de São Miguel Arcanjo/SP. Estas árvores são extensão de Uyra Sodoma, são parte de um todo que compõe a vida e são porções de nós.

As imagens que compõem este artigo são fruto dessa ação, se tornarão colagem e farão parte de uma exposição na galeria da Casa OPOCA.

Foto Documental Oficina de Arte e Ativismo: Gaby.

Júlia Marques Galvão

É Diretora Cultural do Opoca e Mestra em Gestão e Programação de Patrimônios Culturais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Formada em Turismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Possui trajetória com experiências em gestão e programação de projetos culturais, ambientais e educacionais durante toda a sua vida profissional. Se dedica a estudos, vivências e ações sobre temas como feminismos, cultura e racismo.

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