No dia 23 de novembro de 2022 foi aprovado por unanimidade na Câmara de Vereadores de São Miguel Arcanjo o projeto “Nenhuma e Nenhum a Menos: a criação da Rede Municipal de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente e do Plano Municipal de Enfrentamento às Violências Contra a Criança e o Adolescente” elaborado e proposto pelo OPOCA/ASAS para ser iniciado em 2023. O Projeto está pautado no Capítulo VIII, que trata das Emendas Parlamentares Impositivas da Lei n° 4.826, de 30 de junho de 2022, que dispõe sobre as Diretrizes Orçamentárias do Município para o próximo ano. O Projeto de Lei, agora, deve ser sancionado pelo Executivo.
Foto de Débora Fernandes. Festa dos Opoquinhas.
Com recursos destinados pelos vereadores Luiz Antônio França, Gil Sales, Cid José Ferreira, José Alexandre, Guina Castilho da Silva (da Abaitinga) e Júlio César Buscariol, o Projeto assume como objetivo central o enfrentamento às diversas formas de violências contra crianças e adolescentes em São Miguel Arcanjo que se manifestam no contexto intrafamiliar, institucional, rural e urbano. A ação se propõe a criar, em comunidade e de maneira coletiva, estruturas e caminhos para superar as principais mazelas que afetam a infância e a juventude locais: a exploração do trabalho, a exploração sexual de meninas e meninos, a violência de gênero, a violência doméstica, a insegurança alimentar, a presença violenta e coercitiva do crime organizado do tráfico de drogas, dentre outras. O pano de fundo da ação é o contexto de alta vulnerabilidade social da cidade de São Miguel Arcanjo e os reflexos do cenário pandêmico que têm agravado as situações sociais de violência e aprofundado ainda mais as desigualdades sócio-econômicas.
Reunião do OPOCA com vereadores na Câmara de Vereadores. Fonte: Câmara Municipal de São Miguel Arcanjo
O Projeto Nenhuma e Nenhum a Menos é uma ação do eixo de Direitos Humanos do Observatório Popular Cidade do Anjo, e nasce da demanda de comunidades organizadas e institucionalizadas no OPOCA/ASAS que há mais de 12 anos caminham para compreender e superar essas formas de violências. As discussões com os vereadores na Câmara Municipal duraram alguns meses, envolveram representantes do Conselho de Mães, do Conselho de Jovens, do Conselho Diretor e do Departamento Científico do OPOCA e resultaram nessa conquista da comunidade organizada são-miguelense que, forçando a democracia, encontraram com os vereadores os meios possíveis para iniciar o enfrentamento a esses desafios.
Reunião do OPOCA com vereadores na Câmara de Vereadores. Fonte: Câmara Municipal de São Miguel Arcanjo
O contexto em que o Projeto se impõe
São Miguel Arcanjo está entre as cidades mais castigadas do Estado de São Paulo. Apesar de passar boa parte da segunda década do século XXI como o terceiro maior PIB agropecuário do Estado de São Paulo, São Miguel Arcanjo, segundo o IBGE, possuía o dobro da sua média de extrema-pobreza, e, segundo a Fundação Seade, estava entre as suas cidades mais desfavorecidas socialmente: em níveis de renda, educação e saúde, numa escala de um a cinco, quando um representa melhores indicadores sociais e cinco piores, São Miguel Arcanjo ocupava, na década citada, o grupo cinco.
Com cerca de 35% (11.089 pessoas) da população em condições de alta vulnerabilidade social e outros 35% (10.835 pessoas) em situação de vulnerabilidade social, o município possui os piores níveis de desenvolvimento humano do Estado de São Paulo: o IDH de São Miguel Arcanjo ocupava, na década passada, a posição 534 das 645 cidades paulistas analisadas pelo IBGE.
Reunião do OPOCA com vereadores na Câmara de Vereadores. Fonte: Câmara Municipal de São Miguel Arcanjo
Sem um programa de políticas públicas voltado à geração de trabalho, emprego e renda, o salário médio mensal da população em 2020, segundo o IBGE, era de 1.8 salários mínimos e a proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 13.7%. Na comparação com os outros municípios do estado, estava entre os mais lesados: ocupava as posições 568 de 645 e 522 de 645, respectivamente. Já na comparação com cidades de todo o país, ficava na posição 3161 de 5570 e 2518 de 5570, respectivamente. Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa, tinha 38.6% da população nessas condições, o que o colocava entre as piores cidades neste quesito: 60 de 645 dentre os municípios do estado do Estado de São Paulo.
Movida essencialmente por uma economia baseada na grande produção da monocultura agrícola, a exploração do trabalho infanto-juvenil local em algumas lavouras do município e de cidades vizinhas promove não apenas a violência de um dos trabalhos mais prejudiciais para a saúde humana segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS (a colheita de raízes, em especial, em São Miguel Arcanjo, da batata), mas, dentre outras mazelas, índices acima das médias estadual e nacional de evasão e exclusão escolares: cerca de 70% da juventude de São Miguel Arcanjo entre 18 e 24 anos não concluiu o ensino médio na última década.
Castigada por um modelo político, econômico e social compreendido pelo Observatório Popular Cidade do Anjo como Agrossistema, que ajuda a promover a grande quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidades sociais, aliada à cultura do patriarcado e do racismo, à ausência de programas de prevenção, proteção e atendimento à criança e ao adolescente, o município produz e reproduz diversos tipos de violências no seio das comunidades. A exploração sexual de meninas e meninos, a violência de gênero, a ampla presença do crime organizado do tráfico de drogas, a insegurança alimentar e nutricional em diversos graus de dramaticidade humana, chegando à desnutrição e à fome e a exploração do trabalho são algumas delas. Como medida dessa realidade, apontamos a média de gravidez na adolescência como quase o dobro da média do Estado, e a quantidade de jovens de São Miguel Arcanjo em medida socioeducativa em meio fechado equivalente a cidades com até 100 mil habitantes. Segundo dados do Conselho Municipal de Assistência Social, 95% desses jovens foram detidos por envolvimento com o crime organizado do tráfico de drogas.
Como um canto oculto e possuindo um dos piores indicadores sociais do Estado de São Paulo, a infância e a juventude da cidade de São Miguel Arcanjo estão entre as principais vítimas da ausência de políticas públicas, recursos, projetos e programas de proteção, cuidado, prevenção e alternativas às realidades que as ferem e às impulsionam para uma precária saúde mental/emocional; para a auto mutilação, suicídio e tentativa de suicídio; para o crime organizado do tráfico de drogas; para a exploração do trabalho; para a exploração sexual; para a ausência de perspectivas e sonhos, dentre tantas outras violências.
A superação que a gente precisa
O Projeto Nenhuma e Nenhum a Menos pretende discutir, aprofundar e compreender, em comunidade, de maneira coletiva e compartilhada essas questões que é para a cidade se tornar capaz de buscar soluções para superar o que há de mais perverso no íntimo da nossa forma de viver, conviver e de se organizar em sociedade. Dentre as frentes de ação estão a realização de um diagnóstico situacional e de um mapeamento de instituições públicas, privadas e comunitárias que atuam com crianças e adolescentes; um mapeamento das instituições que garantem os direitos da criança e do adolescente e das que precisam ser criadas; a capacitação de trabalhadoras e trabalhadores da área; o envolvimento popular e o envolvimento de crianças e adolescentes na criação da Rede de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente através de oficinas de artes temáticas e de Rodas de Conversa, dentre outras frentes.
O Projeto conta com a parceria do Observatório.pt do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra; do Núcleo de Estudos, Pesquisa, Extensão e Assessoria sobre Infância e Adolescência da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Nepia); do Instituto Biocultural Homo Serviens e da Escola Estadual Nestor Fogaça.
Se seremos ou não uma cidade que protege as suas crianças, vai depender da nossa capacidade de aprender, de buscar e produzir conhecimentos, de se organizar e de investir recursos públicos e privados no que nos faz sentido: na proteção e no desenvolvimento ético da criança, do adolescente e da juventude.
Tiago Mi
Diretor do Observatório Popular Cidade do Anjo e Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Pensamento Crítico Latino-americano pela USP, São Paulo. Pesquisador do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) e do CES no GT Epistemologias do Sul. Colabora com a UPEA – Portugal.