O ano de 2020 foi ímpar. Em 2021, no momento em que o Brasil se torna o epicentro da pandemia no planeta, as violências prometem se estender e se aprofundar ainda mais. O Brasil perdeu as batalhas até aqui contra o vírus. Somos o primeiro país do mundo em mortes diárias causadas pela Covid-19 e impulsionadas por um projeto político pautado na negação do conhecimento e do princípio ético fundamental que é o direito à vida. Não foi e não é possível para a maioria de nós, se proteger. Em estudo elaborado na Austrália pelo Lowy Institute e divulgado no último dia 28 de janeiro, o Brasil foi apontado como o pior país na gestão da pandemia, entre 98 nações pesquisadas.
Em São Miguel Arcanjo, a condução do combate à Covid-19 não foi diferente. Até o fim de março de 2021, chegamos a quase 1500 casos confirmados, centenas de pessoas com sequelas graves provocadas pela doença e ao menos 40 foram as mortes causadas pela não-política de enfrentamento à maior crise da nossa geração. Uma das consequências outras de um momento como o nosso, como a insegurança alimentar que se amplifica em um município que sempre sofreu dessa barbárie, por exemplo, também está longe de ser amenizada por uma política municipal.
Desde os primeiros dias de quarentena, ainda em março de 2020, o OPOCA insistiu em um diálogo com instituições públicas como a Prefeitura, a Secretaria de Assistência Social, a Câmara de Vereadores, o Ministério Público e o posteriormente formado Comitê de Gestão de Assuntos Relacionados à Pandemia, além de algumas instituições privadas, para pensar, articular e criar medidas conjuntas para a proteção e o cuidado contra a propagação do vírus e alternativas sociais e econômicas capazes de fortalecer o distanciamento social, em especial, nas periferias e favelas da cidade. Era preciso, a partir dos problemas e desafios das nossas próprias realidades, gerar um Programa articulado entre as diversas instituições locais para enfrentarmos com força o que nos atingia.
A cultura política local, porém, é forjada do não-diálogo, e o que pautou a condução das políticas de enfrentamento à Covid-19, também em São Miguel Arcanjo, foram a não-ciência, o não-debate, a não-articulação, a não-ação em função do cuidado nos mais diversos âmbitos sociais afetados, aliados a acordos verbais e não publicados que atuavam e atuam contra o distanciamento social e contra medidas básicas de segurança. Ao lado da ausência de qualquer alternativa econômica elaborada que apoie comércio, empresas, trabalhadores formais e informais e torne possível o isolamento e a proteção, as aglomerações e o não uso de máscaras nas campanhas eleitorais e na festa promovida em praça pública pelo prefeito reeleito foram alguns dos momentos mais representativos da política do não combate ao novo coronavírus em São Miguel Arcanjo.
Com o Ministério Púbico, porém, houve diálogo e, ali, através de Procedimento Administrativo criado para acompanhar as ações da Prefeitura, do qual o OPOCA participou, algumas medidas aconteceram, como o aumento da compra de cestas-básicas pela Secretaria de Assistência Social e imposições à Secretaria de Saúde para a organização no trato da pandemia, dentre outras. Tudo, porém, insuficiente diante do contexto apresentado e fortalecido pelo isolamento das instituições.
Assim, se por um lado não foi possível a articulação com as instituições públicas e privadas citadas, por outro lado, houve articulação e organização entre as famílias do OPOCA e com diversas pessoas, apoiadores, empresas, pequenos e médios produtores rurais e outras organizações daqui e de fora de São Miguel Arcanjo.
Entre as famílias envolvidas em nossos Projetos, desde o início da pandemia se manteve um diálogo permanente. O objetivo foi e segue sendo manter o convívio e o cuidado em meio ao distanciamento social; nos precaver das informações falsas que circulam, trocar conhecimentos sobre as formas de nos protegermos do vírus e encontrar soluções que amenizem as dificuldades das famílias.
O “Programa de Enfrentamento à Covid-19 a partir dos Cantos, Becos, Centros e Campos de São Miguel Arcanjo” do Observatório Popular Cidade do Anjo foi sendo criado a partir desses diálogos e 5 frentes de atuação se desenvolveram ao longo de 2020. Já a articulação com as diversas pessoas, apoiadores, empresas, produtores rurais pequenos e médios e outras organizações tanto de São Miguel quanto de fora da cidade, tornou possível com que as 5 frentes do “Programa de Enfrentamento” atingissem resultados que consideramos relevantes para a comunidade são-miguelense, apesar dos limites que qualquer instituição possui diante de uma realidade tão hostil. E são esses alguns dos ensinamentos que podemos ter como base para uma possível condução do enfrentamento à Covid-19 em escala mais ampla em nosso município.
No Brasil de maneira geral e em São Miguel Arcanjo de maneira particular, perdemos, portanto, as batalhas até aqui contra o vírus. Outras batalhas, porém, estão em andamento, e acreditamos que as ações travadas pelo OPOCA através da organização com distintas instâncias da sociedade, podem servir de exemplo para mediações e ações possíveis em escala municipal, nos permitindo, de maneira conjunta entre instituições públicas e privadas locais, enfrentar com mais força os danos que estamos sofrendo cotidianamente em comunidade. Na ironia dos números, o ano ímpar de 2020 somente será distinto do ano de 2021 se houver o envolvimento de pessoas e organizações atentas à gravidade do que estamos vivendo que é para gerar uma força, em comunidade, capaz de furar essa cultura política local do não-diálogo.
E é por isso, também, que o Opoca, nesse momento, foca suas atenções na Campanha A Gente Precisa Da Gente. Conheça, envolva-se e fortaleça!
Tiago Mi
É Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, Diretor do Observatório Popular Cidade do Anjo e Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). É pesquisador do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) e do CES no GT Epistemologias do Sul. Colabora com a UPEA – Portugal.