Cuidado, cultivo e convivência

Na mitologia grega, a Fênix é um pássaro especial: em vida, é capaz de carregar pesos imensos durante o voo e suas lágrimas possuem poderes curativos extraordinários, regenerando feridas. Mas o que a torna ainda mais especial é o que acontece quando a Fênix está prestes a morrer: quando sua vida está quase chegando ao fim, ela entra em combustão – seu corpo vira cinzas e, dessas cinzas, um novo pássaro renasce.

O Projeto Fênix partiu dessa inspiração e desse desafio: como ressurgir das cinzas depois de se carregar tanto peso? Como fazer das lágrimas uma matéria para regeneração? O Projeto Fênix oferece espaços de escuta e acolhimento psicossocial para quando essas perguntas se tornam um desafio no cotidiano – quando o dia-a-dia se torna pesado demais para ser carregado sozinho. Tal como a ave mitológica, esses espaços de escuta buscam transformar a dificuldade em recurso, fazendo com que o que pareciam apenas cinzas se torne, de novo, uma fonte de vida e de renovação. Com atendimentos semanais ou quinzenais, individuais ou em grupo, realizados por profissionais especializados (terapeutas e psicólogas), o Projeto Fênix destina-se a cuidar desses momentos em que a vida parece estar pesada demais e nos quais é preciso um apoio para se seguir em frente.

Para contar um pouco da história de como nasceu o Projeto, é preciso dizer que ele foi fruto do trabalho do Núcleo de Acompanhamento do Opoca. O Núcleo busca mapear e entender melhor as diversas práticas de cuidado que se fazem presentes cotidianamente em todas as atividades do Opoca: seja nos espaços de convivência, seja nas oficinas, os gestos de cuidado se multiplicam, sempre tendo como horizonte o acolhimento do Outro, o compartilhamento de experiências e o apoio mútuo. Através dessas práticas, buscamos criar coletivamente estratégias para lidar com as dificuldades e fazer delas uma motivação para o aprendizado e a transformação de si e do mundo. 

Com o trabalho do Núcleo de Acompanhamento, entendemos que, em alguns casos, demandava- se um cuidado adicional. Em alguns momentos, as dificuldades podem se apresentar de forma mais intensas; nesses momentos, que podem ocorrer com qualquer um e qualquer uma, é importante poder contar com alguém em quem confiamos para escutar nossas experiências e nos ajudar a transformá-las. Uma relação de respeito e confiança pode ajudar a inventar um novo destino para as dificuldades e impedir que elas nos paralisem.

Essa escuta oferecida por alguém em quem confiamos é tão importante nesses momentos e faz tanta diferença que percebemos ser preciso criar um dispositivo só para ela. Assim nasceu o Projeto Fênix, uma das muitas práticas de cuidado do Opoca. Ele serve a qualquer pessoa que, em determinado momento, possa se beneficiar de um espaço para cuidar de si e de suas experiências, com o apoio dessa escuta acolhedora e sem julgamento.

Esses espaços de cuidado são criados em conjunto com a terapeuta. O acompanhamento pode durar o tempo que for preciso – algumas pessoas tiveram atendimentos semanais só por um período, outras preferiram continuar com um acompanhamento mais regular, por um período mais longo. O espaço de escuta está disponível pelo tempo que for necessário. Também é importante dizer que tudo o que é conversado nesses espaços é confidencial: o que é dito é escutado com respeito, acolhimento, sem qualquer tipo de preconceito ou julgamento e não é compartilhado com mais ninguém, caso não se queira.  Pode-se falar de tudo o que se quiser: experiências difíceis, dolorosas ou também alegres. É um espaço para compartilhar com alguém em quem se confia aquilo que precisa de cuidado para que possa renascer.

O Projeto Fênix se apoia em diversas práticas que apostam na busca pelos recursos já disponíveis na situação em que estamos –  mesmo que a situação pareça à primeira vista muito precária e sem alternativas. Mais uma vez, nossa inspiração é a Fênix, que busca nas cinzas as forças para ressurgir. Assim, trabalhamos à espreita do que podemos chamar de “recursos residuais” (Hellal & Lemaire, 2016), ocupando-nos da reconstrução dos laços de confiança (Chauvenet, Despret & Lemaire, 1996), mesmo quando esses se encontram esgarçados e desgastados pelas múltiplas violências que afetam nosso cotidiano. Como norte, nossa aposta é formação de redes, que são para nós ao mesmo tempo agentes e alvos de cuidado, em uma abordagem que podemos chamar de “Trabalho Terapêutico de Rede” (Hellal & Lemaire, 2016).  Para nós, isso é importante porque não entendemos os sofrimentos e dificuldades como exclusivamente pessoais. Embora vividas de maneira individual, essas experiências afetam a todos e todas nós, ainda que de maneiras diferentes. Muitas das dificuldades que enfrentamos estão ligadas a problemas sociais e políticos ou às violências que atravessam nosso cotidiano. Assim, as redes nos lembram que essas experiências com que lidamos não são uma patologia individual ou o sintoma de uma doença; essas experiências apontam para uma dimensão coletiva, comum (Passos, 2020) e demandam um cuidado a ser construído coletivamente.

Assim, o Projeto Fênix está em permanente construção. No momento, contamos com três terapeutas e uma supervisora, temos 7 atendimentos em curso (entre atendimentos semanais e quinzenais). E estamos trabalhando para acolher uma demanda crescente, porque entendemos ser fundamental acompanhar a quem quer que esteja precisando de apoio para fazer das dificuldades uma fonte de transformação e renascimento.   

Referências

CHAUVENET, Antoinette.; DESPRET, Vinciane.; LEMARIE, Jean-Marie. (orgs) Clinique de La reconstruction, Paris, L’Harmattan, 1996.

HELLAL, Selma & LEMAIRE, Jean-Marie. De proche en proche. Proximité et Travail Thérapeutique de Réseau en Algérie. Alger: éditions barzakh, 2016.

PASSOS, Eduardo. “Os dispositivos clínico-políticos e as redes no contemporâneo.” Rev EntreLinhas do Conselho Regional de Psicologia CRP-07 1.2 (2020).

Letícia Renault

Letícia Renault coordena o Núcleo de Acompanhamento do OPOCA. É doutora em Psicologia pela UFF (Universidade Federal Fluminense, Brasil),com estágio doutoral no Departamento de Filosofia da Universidade de Liège (Bélgica). Participou da equipe de adaptação para o Brasil do Guia de Gestão Autônoma da Medicação (GAM) em saúde mental. Tem experiência de estágios em psicologia clínica e saúde pública. Atualmente é investigadora em pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra (Portugal). Integra o Departamento Científico do OPOCA.

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