A modernidade, ao longo do tempo, foi construindo um mundo em que se delimitava onde a mulher, supostamente, deveria estar e se desenvolver como ser humano. Foi simplificada toda a complexidade desse ser ao mundo privado e aos afazeres domésticos. Já para o homem foi construído um mundo fora do lar, público, da criatividade e do trabalho remunerado. Até hoje podemos perceber que esta restrição ainda é presente e se revela em diferentes níveis quando falamos em ocupação de espaços públicos. Por muito tempo esses direitos nos foram cerceados, minando as possibilidades de participações em tomadas de decisões, na política, no meio urbano, na produção cultural e artística e no protagonismo.
Em São Miguel Arcanjo, em nosso poder legislativo, não existe uma única cadeira representando as mulheres; das quinze secretarias municipais, dez são ocupadas por homens. Nas creches, a maioria das educadoras são mulheres e quase não existem homens no trabalho doméstico. O ato de cuidar de algo ou de alguém é destinado às mulheres, e os cargos de poder e de tomadas de decisões que afetam, inclusive, diretamente a vida das mulheres, são ocupados majoritariamente por homens. Precisamos mudar muita coisa ainda, isso é fato.
Desfile Mulheres no Batuque. Segunda de Carnaval.
Ensaio na Casa OPOCA.
Desfile Mulheres no Batuque. Sábado de Carnaval.
Agindo por essa lógica, fica clara a relevância em se apropriar de um espaço que também é nosso por direito e que estamos já um tanto atrasadas para pôr toda a nossa energia em evidência. Nada mais belo e gratificante do que poder manifestar um pouco de toda essa dívida histórica com a estréia em um desfile carnavalesco, em uma cidade do interior, em um bloco formado por mulheres cis, trans, não bináries, população LGBTQIAPN+ (porque acreditamos que não só no bloco, mas na vida, todas as vivências precisam ser respeitadas em todas as suas amplitudes) e crianças, que são consideradas um grupo vulnerável, que vivenciam a cidade e a cultura de maneira cada vez mais limitada.
Ensaio Geral. Sexta-feira.
Ensaio Geral. Sexta-feira.
Esquenta para sábado de carnaval.
Através desse movimento, proporcionado apenas pelo carnaval, conseguimos ser pioneiras em nossa cidade de uma maneira que um discurso político, acadêmico, ou até mesmo uma política pública jamais conseguiu até aqui. Essa manifestação cultural que antigamente era motivo de orgulho sãomiguelense, ainda cria novas concepções de vivências na cidade. O carnaval transforma o significado da rua que privilegia carros, a pressa, a passagem frenética, proporcionando o tempo para o lazer, o ócio, a contemplação. O ato de ir para rua pode e deve trazer a possibilidade de demandas mais coletivas, relacionadas com mais espaços abertos, lugares para sentar-se, banheiros públicos que sejam de fato públicos, ruas e avenidas fechadas para o uso de pedestres e crianças, áreas verdes, etc. Grandes metrópoles já fazem isso. E esse é um dos objetivos do nosso coletivo, tornar a cidade mais afetiva para as suas e para os seus.
Apresentação Mulheres no Batuque na Escola Estadual Massanori, Colônia Pinhal.
É bom dizer que dificilmente seremos chamadas ou convidadas a furar a lógica da rede do patriarcado. Precisamos nós mesmas rasgar essa fenda. Por isso: “ninguém me chamou, mas estou aqui que é que há. Olha quem chegou, mulheres no batuque, oya oyá.
Deixamos um agradecimento especial a todas as nossas ancestrais desta terra, às mulheres que estão em baterias predominantemente masculinas, e a todas aquelas que se emocionaram e se sentiram representadas com o nosso bloco.
Também à @zolivre que investiu nessa frente feminina, à @casaopoca por abrigar sonhos e utopias necessárias e ao bloco @mulheresnobatuque que demonstrou cada uma, e cada um, à sua maneira, força, coragem e disposição para aprender sempre, e sobretudo com potencial para evoluir a cada ano.
Referências
Beatriz de Paula e Danielle Klintowitz. Botar seu bloco na rua é direito à cidade.
Bloco Vacas Profanas
Cecília Garcia. Carnaval de rua tensiona e promove direito à cidade.
Ana Camila Andrade de Almeida. Cidade segura para as mulheres: o direito à cidade da mulher e a ocupação dos espaços públicos.
Rhaisa Pael. Cidade e Infância: uma perspectiva de direitos.
Júlia Marques Galvão
É Diretora Cultural do Opoca e Mestra em Gestão e Programação de Patrimônios Culturais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Formada em Turismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Possui trajetória com experiências em gestão e programação de projetos culturais, ambientais e educacionais durante toda a sua vida profissional. Se dedica a estudos, vivências e ações sobre temas como feminismos, cultura e racismo.