No Caminho de São Miguel. Seu Alígio, Romeiro e Guardião da Memória

Romeiro desde 1944, tal como conta em entrevista para um estudo que realizei em 2011, Seu Alígio José da Silva foi um dos romeiros de São Miguel Arcanjo que mais fez a caminhada até Iguape. No início, sua peregrinação era mais restrita, com apenas uma ou duas pessoas de sua família. Porém, depois de alguns anos, sua determinação impulsionou os amigos que se organizaram em um grupo para irem juntos a pé.

O grupo começou nos anos de 1980. Antes chamado de “Amigos do Ari”, agora, “Amigos”, tinha como integrantes Seu Alígio, Ari, Nelson e Boi, sendo este último figura importante para o cenário do esporte são-miguelense. Em conjunto, Seu Alígio completaria 26 caminhadas ininterruptas.

Uma característica singular das peregrinações é o fato de ser uma atividade realizada em grupo ou individualmente, mas que, tanto em uma quanto em outra, está profundamente ligada à experiência pessoal. Quando feita em grupo, se estreitam os laços comunitários entre os participantes, ao mesmo tempo em que atendem às necessidades pessoais (Dia, 2003 apud Galvão, 2012).

Até aquele momento, com seus 85 anos de vida e pronto para a próxima caminhada, Seu Alígio não sabia que essa seria sua última romaria a pé. Segundo conta, teve que parar de fazer o percurso devido a um acidente que o fez ter a sua mobilidade reduzida. Mas o Senhor Bom Jesus de Iguape permitiu que nada o afetasse: “enquanto for vivo, pretendo fazer a romaria, mesmo sendo de carro”.

Sua última romaria foi em 2011, junto de seu grupo. O percurso, porém, não foi completado. Infelizmente teve que fazer uma parte da viagem em cima do caminhão, que era seu carro de apoio. Até ali, o objetivo era continuar enquanto fosse vivo, porém, para ele, passou a não fazer sentido realizar o trajeto de carro. A sua intenção era sentir o caminho em seus pés, como sempre fez. E fez até não poder mais. Com 85 anos de vida empreender uma caminhada de 180 km é coisa para quem tem muita determinação, fé, coragem, amor e humildade. A caminhada que, muitas vezes é tratada como uma penitência, em seu caso não tinha como finalidade abrandar o sentimento de remorso ou pagar pelos pecados cometidos, mas sim um esforço físico, emocional, psicológico e espiritual como forma de agradecimento a tudo que foi conquistado.

Seu Alígio inaugura uma nova categoria (in memoriam) em nosso Mapa Afetivo, a do Guardião da Memória. Essa categoria abrange pessoas que transmitem saberes, histórias, conhecimentos, modos de fazer através da oralidade, de conversas, encontros, práticas e prosas.

Foi um prazer conhecê-lo em vida, Seu Alígio! Parabéns pela história, pela fé, pela perseverança que levou consigo e que agora deixa para nós em forma de saudade.

A prática da Romaria de Bom Jesus de Iguape é muito comum em São Miguel Arcanjo, tanto pela questão religiosa, quanto pelo acesso que a estrada-parque proporciona para o litoral. Segundo os estudos que realizei (Galvão, 2012), esta prática acontece há pelo menos 100 anos e vem se transformando com o decorrer do tempo. Antigamente era feita unicamente por homens e o percurso acontecia a pé ou a cavalo. Com o passar do tempo, muitas características e elementos foram se incorporando, se transformando e se adaptando às épocas. Sem existir algum tipo de documento oficial, tampouco um estudo mais aprofundado sobre a manifestação, suas características, os problemas e os desafios para sua continuidade, etc., a prática consegue manter sua existência sendo transmitida de geração para geração.

Dessa forma, a voz de Seu Alígio, como de outros romeiros e romeiras, se torna essencial para estudo, identificação e transmissão do conhecimento sobre essa que é uma das manifestações mais tradicionais da cultura são-miguelense.

Júlia Marques Galvão

É Diretora Cultural do Opoca e Mestra em Gestão e Programação de Patrimônios Culturais pela Universidade de Coimbra, Portugal. Formada em Turismo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Possui trajetória com experiências em gestão e programação de projetos culturais, ambientais e educacionais durante toda a sua vida profissional. Se dedica a estudos, vivências e ações sobre temas como feminismos, cultura e racismo.

Referências

Galvão, Júlia Marques (2012). Turismo religioso e romarias: um estudo sobre o perfil dos romeiros de Bom Jesus de Iguape (SP). Monografia apresentada à Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) Campus Sorocaba.

Acesse aqui o Mapa Afetivo da Cultura São-miguelense.

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