O Máscara

Aqueles de nós que ainda temos o privilégio de sentir empatia podemos até tentar imaginar o desafio de ser um filhote de onça de seis meses de idade, fascinado por tudo, seguindo nossa mãe onça por um lugar desconhecido no Vale do Ribeira, nossa cauda pontuda balançando com nossos passos ainda um pouco bambos, e aprendendo com ela o que caçar, como caçar, como nos orientarmos pelo seu imenso território e, principalmente, o que evitar.

Ilustração de Ezequiel Mariano.

E o que evitar sempre teve o nome do bicho que acinzentou a terra e suas criações.

Evitar o asfalto, evitar as casas, evitar o metal cinza das armas, evitar os lugares de onde vem o barulho de tudo isso, manter o máximo de distância possível.

O Máscara, pequeno, aprendeu muito bem. Até aí podemos imaginar. Mas, e os próximos oito anos?

Mesmo aqueles de nós que temos o privilégio de conhecer um pouco da floresta sabemos tão pouco do mistério e da beleza das suas grotas, encostas e rios. Mesmo toda a empatia do mundo é rala quando tentamos imaginar a satisfação de uma noite estrelada, dormindo de barriga cheia no topo de uma encosta, ouvindo a vida da floresta em volta e vigiando o local onde está a presa que caçamos que ainda dá para umas duas refeições.

Então, sobre os primeiros oito anos de vida do Máscara só podemos supor que foram como os de outras onças pintadas do Vale do Ribeira: andando distâncias descomunais pelas florestas mais lindas desse planeta, e cumprindo todas as funções de predador de topo, sujeito chave na manutenção da beleza e da vida destas florestas.

Ilustração de Ezequiel Mariano.

Sabemos que ele fez isso bem, pois, mesmo após assassinado, tirando os cinquenta baletes de chumbo de pelo menos dois tiros diferentes, a pata quebrada por outro tiro e o estômago vazio por ter passado muito tempo sem conseguir se alimentar, o Máscara ainda era um animal saudável.

Quando a felicidade foi virando tragédia? Isso também tem que ser suposto, imaginado. Pode ter começado quando muitos dos alimentos do Máscara foram arrancados pelos humanos.

Tiros, currais, armadilhas, cevas. Tudo isso tornou-se cada vez mais comum no interior da floresta, e a quantidade de catetos, veados, pacas e antas diminuía. Não era mais possível evitar o cinza das estradas, pois o Máscara tinha que andar demais procurando as presas escassas. Não era mais possível evitar os sons associados aos humanos, pois esses sons se espalhavam por toda a floresta, e o Máscara teve noites insones e durante muitas semanas a fome cresceu e cresceu até se tornar mais poderosa do que o medo. E uma noite ele sentiu o cheiro de uma presa peluda e quente: um cão! E ficou esperando até que todos os barulhos humanos silenciaram. O cão, amarrado por uma corrente a um poste numa certa distância da casa, não teve chance de fugir e quase nem teve tempo de granir. Era um cão grande, que o Máscara arrastou para dentro da mata e por alguns dias a fome sumiu.

E aí já estamos em outubro de 2020, quando podemos deixar a imaginação e contar que os cães de dois moradores do interior do PETAR começaram a ser comidos por uma onça pintada. Mesmo assim não sabemos em quais outros lugares o Máscara procurou e comeu cães e em qual destes locais ele levou o primeiro tiro, aquele que quebrou sua pata.

Ilustração de Ezequiel Mariano.

Na verdade, até mesmo isso é uma suposição. Esse primeiro tiro pode não ter sido decorrência da aproximação de uma habitação humana. Em uma região em que a caça ainda é uma prática constante e um problema, o Máscara pode ter sido alvejado dentro de sua própria casa, um dos Parques Estaduais do Mosaico de Paranapiacaba, por um dos mesmos caçadores que lá entram para acabar com as presas das onças pintadas: as antas, veados, catetos…

Podemos apelar novamente para a empatia ao sentir que vizinhos incômodos entram em nossa casa, destroem nossa comida e atiram em nós. Além disso, aqueles de nós que já quebramos algum osso, lembramos a dor medonha antes da imobilização por gesso e lembramos quanto tempo levamos para tirar o gesso e os primeiros passos depois disso, podemos – com o coração apertado – imaginar como teria sido sem o gesso…

Quanto tempo ficaríamos sem poder pisar, como arrumar comida sem usar um dos pés?

Possivelmente a fome e a dor estiveram presentes durante os sete últimos meses da vida do Máscara.

Temos registros dele mancando um pouco em janeiro e mancando quase nada nos meses seguintes, perto das bordas dos Parques e das habitações humanas ou em locais muito no interior da floresta. Esses registros nos fazem respirar um pouco no meio da aflição, pois mostram que esses sete meses não foram só sofrimento, medo e fome. Entretanto, um pé quebrado e não imobilizado forma um calo ósseo imperfeito, que vai se quebrando a cada impacto mais forte, e em um destes impactos o pé se escangalhou totalmente.

Um vídeo de armadilha fotográfica, de 10 de junho, mostra o Máscara gemendo a cada passo. E emagrecendo. Até conseguirmos esse vídeo nós, pesquisadoras, e a equipe da Fundação Florestal, responsável pelos Parques Estaduais Intervales e PETAR, onde o Máscara vivia, havíamos nos concentrado em implantar medidas de contenção que evitassem que os animais domésticos fossem comidos: cercas elétricas, luzes que se acendiam com a passagem de um animal, sons que o espantassem.

Entretanto, esse vídeo deixou claro que o Máscara precisava de ajuda, e começamos a programar sua captura para tratamento. Não deu tempo.

Ilustração de Ezequiel Mariano.

A região onde o Máscara estava se alimentando de animais domésticos não tem muita gente morando. Uma dessas moradoras nos procurou pedindo ajuda: seus bichos estavam sendo comidos por uma onça. Ela e seu irmão viram a onça pulando a porteirinha da varanda com sua cachorrinha na boca. Ela nos falou da beleza da onça e da sua angústia: como continuamos todos aqui, eu, a onça e meus bichos?

Na casa dela instalamos cerca elétrica em volta dos bichos domésticos e luzes noturnas. Segundo ela, depois disso não houve mais problemas. Em locais desse tamanho, todos sabem de tudo. Todos deveriam saber que bastava nos procurar para conseguir apoio. Alguém optou por ignorar isso.

Na manhã de 5 de julho, o Máscara foi encontrado morto em um córrego na beira da SP 250, exatamente na divisa entre Capão Bonito e Guapiara. Ele não foi assassinado lá, havia marcas de pneus mostrando que foi levado para lá e jogado de um carro. Quem o matou fez questão de que essa morte fosse conhecida. Uma espécie de afirmação : “Eu fiz porque eu posso”. A caça anda cada mais vez mais impune, contando com o apoio explícito de governantes. Na tarde deste dia, estava marcada a última reunião de planejamento para a captura do Máscara.

O Máscara ganhou esse nome por ter duas rosetas- que são as pintas das onças pintadas – em forma de máscara, com aqueles buraquinhos para os olhos. No meio delas, ele tinha uma linda roseta na forma de uma cabeça de cachorrinho.

Ilustração de Ezequiel Mariano.

Existe uma história de alguém que foi gozar a cara de um monge budista que estava comendo, deliciado, um peixe: “Monge, para os budistas a vida não é o mais importante? Porque você está comendo a vida deste peixe?” “O peixe está virando monge”! Respondeu ele. Não é só ele que pensa assim: em algumas culturas que viviam com a natureza em equilíbrio e respeito, os caçadores agradeciam aos animais caçados ou seus espíritos.

Dá vontade de imaginar que os cães que o Máscara comeu para sobreviver em meio ao lento assassinato da floresta por nós, ao virarem onça, se expressaram naquela linda roseta.

Beatriz Beisiegel

Beatriz é bióloga com pós graduação em comportamento animal e ecologia. Atualmente é analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Há mais de 20 anos se dedica a pesquisas sobre as diversas espécies de mamíferos carnívoros que habitam o Mosaico de Paranapicaba, especialmente sobre os canídeos, quatis e onças.

Ezequiel Mariano

Pintor e Artista, Ezequiel é artista residente da Casa OPOCA e ilustrou a história do Máscara escrita por Beatriz Beisiegel.

Comments are closed.

  • mídia lab