19 de novembro é o dia da bandeira. Data escolhida em 1889 para homenagear a bandeira brasileira. Essa, que é o símbolo para marcar o fim do Império e o início da República, foi criada sob influência das formas e cores da antiga bandeira imperial, dado que sugere certa permanência e influência da estrutura política do passado no presente identitário republicano, além de possuir inspiração no lema positivista “o amor por princípio e a ordem por base, o progresso por fim”, realçando a obediência e hierarquia como premissa de desenvolvimento. Há, neste contexto de surgimento da bandeira, pontos a se questionar correspondentes a resquícios do período imperial e superioridade de alguns grupos sobre outros, no entanto, essa conversa fica para outro momento. O que se deseja debater neste texto são os eventos das últimas semanas, ligados às eleições presidenciais, onde a presença da bandeira se fez mais latente em imagens na mídia, cujas representações fazem menção direta ao fascismo. Há, inclusive, dentre estas imagens, aqueles que defendem o retorno da bandeira do império ainda monárquico e escravista do século XIX. Percebemos que o amor, lema do princípio, cai por terra, e vemos imperar a defesa do domínio colonial, o racismo e muito discurso de ódio.
Trabalho de elaboração da Bandeira do Coletivo Cacau na Oficina de Arte e Ativismo do OPOCA.
A partir desses fatos recentes, o Coletivo CACAU, na Oficina de Arte e Ativismo, debateu sobre símbolos e gestos de apologia ao fascismo, sistema de poder autocrático, autoritário e ultranacionalista. Ao analisar estas imagens, compostas por manchetes de jornais, fotos e vídeos circulados nas redes sociais, constatamos que de fato os signos sugerem pacto, identificação e elogio à ideologia fascista. O exemplo mais marcante e que se manifestou repetidas vezes foi a nossa bandeira do Brasil com o elemento da suástica. Símbolo proibido em território nacional sob a lei 7.716/1989, segundo a qual é crime fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Além disso, a lei se complementa com praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião de/com procedência nacional. Situações essas de discriminação que testemunhamos como violência contra sujeitos negros, mulheres, comunidade LGBTQIAP+, periféricos e nordestinos após o resultado das eleições. A bandeira nacional sobreposta com a suástica e as saudações nazistas se assume como marca de um grupo que comete tais crimes de intolerância.
1: https://jornalistaslivres.org/mp-de-santa-catarina-investiga-nazismo-em-saudacao-de-bolsonaristas/ 2: Bandeira do Brasil apreendida em Passos, Minas Gerais: https://m.facebook.com/watch/?v=215040760333732&paipv=0&eav=AfYMBti_fzucO6nmXVZ7TRayp9sqIh-iEkmDMBmsFO4NJ_3bTKNxFlYhnEBdyNhhi4M&_rdr 3: Manifestante segura bandeira do Brasil Império em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58464275
Em seguida, conversamos sobre o relatório feito recentemente pelo Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil onde lemos sobre um aumento alarmante de violências antissemitas, neonazistas e de caráter fascista entre 2019 e 2022, nas quais se realçam racismo, homofobia, xenofobia, entre outras formas e alvos de intolerância. Os objetivos deste relatório é mapear, classificar, documentar e denunciar violações aos Direitos Humanos e atentados à Democracia. Para ler o material completo, acesse o link abaixo.
Relatório de Eventos Antissemitas e Correlatos no Brasil https://static.poder360.com.br/2022/08/Relatorio-Observatorio-Judaico-2022.pdf
Para reforçar o quão problemática é a representação da suástica, debatemos acerca de um vídeo curto sobre a campanha internacional #PAINTBACK feita pelo artista e ativista alemão Ibo Omari de apagamento da suástica, ressignificando-a na composição de outros desenhos. Isso demonstra o quão repudiada é a suástica em território alemão, e assim deveria ser também em todo o mundo, pois, uma vez mais, enfatiza a ideologia da violência e do racismo.
Iniciativa #PAINTBACK da associação berlinense “Die Kulturen Erben e.V.” https://www.youtube.com/watch?v=SghuUOPRi00
Como modo de questionar as reincidentes bandeiras do Brasil com simbologia violenta, nós, enquanto Coletivo, decidimos criar a nossa própria bandeira como avesso da bandeira oficial verde e amarela. Através das perguntas: De que maneira a bandeira do Brasil faria mais sentido pra nós? De que maneira a bandeira do Brasil nos representaria?, questionamos, assim, o passado e o presente da semântica empregada na bandeira com o intuito de criar novos sentidos e compor a nossa própria.
Para nos inspirar, vimos um acervo de bandeiras ressignificadas feitas por artistas visuais contemporâneos e coletivos culturais. A bandeira verde e rosa da Escola de Samba da Mangueira, em 2019, reformula como nova ordem e novo progresso o protagonismo dos “índios, negros e pobres”.
Leandro Vieira, Índio, Negros e Pobres, 2019, bandeira de tecido
“Fantasmas da Esperança” de Marcela Cantuária revela uma pintura com as formas da bandeira do Brasil, porém, tem como ponto central a narrativa avessa da história tida como oficial. Os protagonistas são pessoas que estiveram na clandestinidade, foram torturadas e mortas durante a ditadura civil-militar; e o verde foi substituído pelo vermelho, uma vez que o significado de Brasil, no tupi-guarani, é vermelho feito brasa.
Marcela Cantuária, Fantasmas da esperança, 2020, tinta sobre papel.
A “Bandeira Nacional” (2021) de Desali se compõe de 504 esponjinhas verde-amarelas usadas na pia da cozinha e é sustentada por 6 limpadores de chão. Já a versão da bandeira de Jefferson Medeiros chama-se “Cobertor“ (2020) e é composta por tecido de feltro.
1. Desali, Bandeira Nacional, 2021, esponjas e limpadores de chão. 2. Jeferson Medeiros, Cobertor, 2020, feltro costurado
Vimos, também, a bandeira de Abdias Nascimento (1970) que trocou o lema positivista “ordem e progresso” por “okê, okê, okê, okê”, saudação a Oxossi; o “Brasil” da Marília Scarabello é feito de sabonete e vai se dissolvendo e indo embora pelo ralo; e a “Bandeira de Farrapos” (1993) de Martha Niklaus é feita inteiramente com roupas descartadas por moradores de rua.
1. Abdias Nascimento, Okê Oxossi, 1970, tinta sobre papel. 2. Marília Scarabelo, Brasil, 2021, fotografia digital. 3. Martha Niklaus, Bandeira de Farrapos, 1993, roupas costuradas
Todas essas obras sugerem outros sentidos e reflexões ao que se constitui como símbolo oficial do povo brasileiro. Por fim, dialogamos sobre uma fotografia da série “Aceita?“ (2014), de Moisés Patrício, em que a palma da mão esquerda do artista se estende para oferecer uma bala de munição sendo que o fundo da imagem tem uma pintura da bandeira do Brasil no chão de asfalto. A fotografia e o gesto são uma crítica ao racismo estrutural em território brasileiro.
Moisés Patrício, série Aceita?, 2014, fotografia digital
A nossa insígnia teve como destaque os três temas debatidos na Oficina de Arte e Ativismo durante todo o ano de 2022, são eles: feminino e feminismo na arte; raça e etnia na arte e; questões LGBTQIAP+ na arte. Logo, a nossa bandeira brasileira ressignificada se dividiu em quatro partes dedicadas às mulheres, aos negros, aos indigenas e à comunidade LGBT. Homenageamos corpos e vozes que nos inspiram a refletir sobre outras narrativas; “gentes” que questionam os discursos e estruturas de poder e agem por um Brasil que valorize a diversidade de seu povo. Nomes como Marielle Franco, Carolina Maria de Jesus, Milton Santos, Matheusa Passareli, Kerexu Yxapyry, Ailton Krenak, Sônia Guajajara, entre outres foram saudados.
Alfredo Jaar com frase de John Cage, Outras pessoas pensam, cartaz-obra, 2021
A ideia principal é visibilizar corpos individuais e coletivos, os quais são os mais acometidos por violências estruturais nesse país, pelo machismo, patriarcado, racismo, homofobia, transfobia e aporofobia (aversão aos pobres). No centro da bandeira substituímos o “ordem e progresso” por “outras pessoas pensam” de John Cage, cartaz-obra impressa pelo fotógrafo Alfredo Jaar na exposição “Lamento das Imagens” (2021), que fala sobre a necessidade de incluir o outro, reconhecer o pensamento do outro e sua subjetividade. Na época do texto, Cage refletia sobre a necessidade de reconhecer os outros, sujeitos apagados pelo sistema colonizador, patriarcal, europeu e ocidental.
Trabalho de elaboração e montagem da Bandeira do Coletivo Cacau na Oficina de Arte e Ativismo do OPOCA.
O ato do Coletivo CACAU neste dia 19 de novembro foi estender a nossa versão da bandeira com o intuito de criar um espaço de diálogo sob o lema de que OUTRAS PESSOAS PENSAM.
Partes da Bandeira pronta.
Por fim, nós, enquanto Coletivo CACAU e OPOCA, reforçamos o repúdio às manifestações que aludem ao fascismo e nazismo porque acreditamos que essas simbologias carregam a memória histórica de genocídios raciais e étnicos do século XX e seguem ferindo as vidas que habitam o século XXI, inclusive vidas são-miguelenses.
Bandeira inteira.
Sugestões de leituras complementares
“Índios, negros e pobres”: como a arte ressignificou a bandeira do Brasil: https://www.nonada.com.br/2021/11/indios-negros-e-pobres-como-a-arte-ressignificou-a-bandeira-do-brasil/
9 artistas que ressignificaram a bandeira do Brasil nos últimos anos: https://www.artequeacontece.com.br/9-artistas-que-ressignificaram-a-bandeira-do-brasil-nos-ultimos-anos/
Dia da Bandeira: 10 coisas que você talvez não saiba sobre o símbolo brasileiro: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46259929
Qual o significado da bandeira do Brasil Império e por que ela foi apropriada por bolsonaristas: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58464275
Débora Fernandes
Débora Fernandes é artista-educadora, pesquisadora e fotógrafa. Mestranda em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e formada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Londrina (2017). Media a Oficina de Arte e Ativismo e é responsável pela Comunicação e Artes Visuais do OPOCA.