Era dezembro de dois mil e quatorze. Dia seis. Marquei o horário: 16:27h. E assim o fiz por que me parecia importante aquele momento. Em meio à leitura da Pedagogia da Esperança de Paulo Freire iniciava os escritos do que viria a ser esse estudo com uma carta àqueles e àquelas que permaneceram em São Miguel Arcanjo construindo no cotidiano essa nossa utopia. Foi um certo tipo de pré-introdução a esses escritos e carregava o título Uma carta às goiabeiras: reviver o vivido, arquitetar o presente e caminhar: uma pretensão. Seguindo os diálogos que íamos realizando, o objetivo era lhes apresentar o projeto de tese que estava sendo construído aqui, no programa de pós-colonialismos e cidadania global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, nessa interação entre nós de lá e a gente daqui, enquanto pensava, repensava, revivia e escrevia a elas e a eles um pouco do caminhar que me trouxera, então, a esse lugar.
Paulo Freire em suas reflexões em Pedagogia da Esperança relê e rediscute a sua Pedagogia do Oprimido e como diz, revive as tramas da vida que o marcaram e o levaram a escrever aquilo que marcou também – dentre tanta gente por tantos lugares – o meu caminhar. E foi assim, relembrando e, ao relembrar, revivendo o vivido, revivendo as experiências que me levaram às escolhas que fiz, que me propus a iniciar os escritos do que viriam a ser essas páginas. Se fizesse diferente, entendia, dificilmente conseguiria justificar o porquê de me embrenhar nos estudos sociais e humanos críticos da maneira como vinha tentando fazer e que pretendia aprofundar no decorrer do processo de construção dessa tese. A metodologia de meu trabalho seria, talvez, injustificável, porque não é distante do que eu sou, ou do que eu fui me tornando, caminhando nos lugares em que caminhei, ao lado dos que aprendi convivendo e dos mestres e mestras que encontrei pelo caminho que realizei esse estudo. Como diz Paulo Freire:
Ninguém deixa seu mundo, adentrado por raízes, com o corpo vazio ou seco. Carregamos conosco a memória de muitas tramas, o corpo molhado de nossa história, de nossa cultura; a memória, às vezes difusa, às vezes nítida, clara, de ruas da infância, da adolescência; a lembrança de algo distante que, de repente, se destaca límpido diante de nós, em nós, um gesto tímido, a mão que se apertou, o sorriso que se perdeu num tempo de incompreensões, uma frase, uma pura frase possivelmente já olvidada por quem a disse. Uma palavra por tanto tempo ensaiada e jamais dita, afogada sempre na inibição, no medo de ser recusado que, implicando a falta de confiança em nós mesmos, significa também a negação do risco (Freire, 2015, 45).
Não me era possível, portanto, da mesma forma como não partimos ou chegamos vazios a lugar algum, adentrar a essa escrita – algo que mergulhei de corpo, mente, alma – sem deixar que as raízes, as tramas, as vivências repletas de erros, indignações, fracassos, alegrias, acertos e aprendizagens e de memórias que me perseguiam, me lembravam sobre o que deveria ter dito ou como ter dito ou quando devesse ter feito silêncio; ou quando silenciei em momentos em que deveria ter dito; mas que sobretudo suportavam e suportam, com felicidade, o meu andar, movessem isso a que passei a chamar, a partir do que nós chamamos, A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Uma utopia real de um lugar concreto, criada e construída cotidianamente por pessoas comuns, pelas gentes e os nossos sorrisos, gestos, persistências, criatividades, dores, resistências, superações. A construção dessa escrita não podia deixar de absorver as tramas que me levaram ao andar que assumi, com todos os meus limites, ao lado das minhas e dos meus, para ajudar a construir no mundo um mundo mais nosso.
Uma responsabilidade ética pessoal movida pela capacidade intrínseca do ser humano em aprender, em perceber o mundo, em se perceber nele, em ser e fazer-se humano enquanto caminha. Em intervir no mundo com as pessoas; aprendendo, mais uma vez, ensinando, refletindo, revivendo. Em sua capacidade de teorizar o andar enquanto anda para melhor ir conhecendo o caminho que optou ou que foi chamado a construir para, conhecendo-o melhor, melhor o ir construindo. Como escreve Freire, “ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, sem aprender a refazer, a retocar o sonho por causa do qual a gente se pôs a caminhar” (2015: 213).
Trata-se de uma responsabilidade ética que, em comunidade, “remete não para uma apologia, mas para o reconhecimento daquilo com que cada um, como humano, contribui no trabalho de fazer o mundo (Mbembe, 2014: 165)[1]. Um caminhar em que o ser humano vai se constituindo como humano enquanto vai constituindo a realidade e enquanto vai sendo também constituído por ela; que vai forjando a subjetividade de quem anda pelas fronteiras impostas por novos e velhos poderes à procura de fraturas (Cunha, 2014: 210) que permitem a vida. E que nesse andar vai encontrando ou abrindo espaços “por onde passam as suas invenções, poderes, autoridade e reconhecimento” (Cunha, 2014: 210); a sua capacidade de criar, essa parte ativa do ser, do viver; da prática da liberdade; algo que implica, do humano, ser radicalmente humano, como escreve Catherine Walsh (2013: 44).
Do ato daquele ou daquela que “procurará doravante assumir responsavelmente o mundo, dando a si mesmo o seu próprio fundamento” (Mbembe, 2014: 61) e neste ato, “converter o mundo numa questão pessoal, assumir uma espécie de responsabilidade pessoal que cria uma transparência total entre os atos e as suas consequências” (Santos, 2011: 348), trazendo consigo a responsabilidade ética de mover-se no mundo com e entre as gentes, nos espaços, entre as brechas. É algo passível de apreensão enquanto se caminha. Algo que temos assumido no andar da utopia como educar-se.
Porque como “presença consciente no mundo não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-me no mundo” (Freire, 2000: 51). Porque diante de um mundo que impede o ser humano de viver e viver bem, é preciso aprender a construir os meios capazes de superar o que está dado, e agir para construi-los, aprendendo a construir, “fazendo o caminho ao andar” (Gutiérrez, Prado, 1999: 83), entre todos, em diálogo simétrico, em aprendizado mútuo porque é feito a partir do chão de onde pisamos.
É um educar-se humano, ético, político e esperançoso porque “nenhuma realidade social, histórica, econômica é assim porque está escrito que assim seja (Freire, 2000: 53). O educar-se para a vida, para a existência faz sentido “porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo” (Freire, 2000: 20). Porque “num mundo a que faltasse a liberdade e tudo se achasse preestabelecido” (Freire, 2000: 51) não seria possível falar em esperança, não faria sentido falar em utopia, não faria sentido falar em educar-se.
O educar-se faz sentido porque é uma ação política em função da produção, reprodução e do desenvolvimento da vida humana concreta de cada sujeito ético, de cada sujeita ética e vivente em sua comunidade de vida (Dussel, 1998). Porque “sendo a vida a condição absoluta da existência humana, a sua negação incluiria evidentemente a extinção de todas as dimensões de tal existência (Dussel, 2009: 462). A vida é a condição absoluta da existência humana, mais uma vez. E a existência humana é o que dá à vida as suas possibilidades, os seus contornos, os seus ritmos, o seu conteúdo, o seu alimento, os seus sonhos, a esperança.
Como escreve Freire, “a experiência existencial incorpora a vital e a supera”. A existência é “a vida que se sabe como tal, que se reconhece finita, inacabada”. É a vida “que se move no tempo-espaço submetido à intervenção do próprio existente […]; que se indaga, que se faz projeto; é a capacidade de falar de si e dos outros que a cercam, de pronunciar o mundo, de desvelar, de revelar, de esconder verdades” (2000: 51). E porque a “sobrevivência individual, em última instância, está em função da sobrevivência da vida como uma totalidade” (Ramose, 2009: 167), a gente assume como obrigação ética a capacidade de sermos em relações dignas com os outros: porque o movimento é o princípio do ser, as forças da vida existem para serem trocadas através e entre os seres humanos, em cooperação e cuidados mútuos, firmados no reconhecimento da humanidade própria através do reconhecimento da humanidade dos outros em uma luta constante pela harmonia e pela busca por compreender o cosmos e dar significado ao seu lugar dentro dele (Ramose, 2009: 167), como ensina o pensamento Ubuntu.
Trata-se, portanto, de um educar-se humano, ético, crítico, político, social, espiritual, estético; de um filosofar em função das mulheres e homens, crianças, jovens, senhores, velhas; de uma comunicação em função da compreensão e da pronúncia de si e do mundo; de um diálogo possível e horizontal para a aprendizagem, para uma educação para a transformação de uma realidade que impede os homens e mulheres, crianças, jovens, senhoras e velhos de viver e viver bem.
“Educar a imaginação é ter fé nas possibilidades que nascem do processo educativo com vistas à construção de um mundo possível que se faz, se transforma e se constrói conosco. Trata-se, em consequência, de fazer com que as realidades inexistentes existam; trata-se de fecundar futuros plena e audaciosamente; trata-se de tornar visível o que é invisível através do permanente reembasamento do presente; trata-se de se preocupar com o inacabado; trata-se, enfim, de priorizar em nossas vidas a subjetividade e a imaginação criadora numa linha de força que dá sentido e plenitude à epopeia humana” (Gutiérrez, Prado, 1999: 119).
Trata-se, por tanto, de um saber, como escreve Bloch, “não no sentido do entendimento meramente contemplativo, que aceita as coisas como são e estão no momento, mas no da participação, que as aceita em seu movimento” e que, neste ato, se faz capaz de operar no concreto em aberto da existência ([1959] 2005: 14). Um saber capaz de ir tornando a esperança e a utopia cada vez mais plenas, mais claras, menos caprichosas, mais conhecidas, mais compreendidas e em comunicação com o correr das coisas (Bloch, [1959] 2005: 14); em comunicação com a própria existência humana de quem caminha. Um saber em que o sonho se torna tanto mais aguçado quanto mais claramente se torna consciente; em que o sonho quer ser plenamente claro e a intuição, correta, evidente (Bloch, [1959] 2005: 143). O sentido é transpor aquilo que ofende, castiga, maltrata de uma tal maneira que “aquilo que está aí não seja ocultado nem omitido. Nem na sua necessidade, nem mesmo no movimento para superá-la. Nem nas causas da necessidade, nem mesmo no princípio da virada que nela está amadurecendo” (Bloch, [1959] 2005: 14):
Desnecessário dizer que essa forma do saber é a única objetiva, a única que reproduz o real na história: os acontecimentos produzidos por seres humanos que trabalham dentro do rico tecido processual entre passado, presente e futuro. E esse tipo de saber, justamente por não ser apenas contemplativo, efetivamente conclama os sujeitos [e as sujeitas] da própria produção consciente (Bloch, [1959] 2005: 196).
Um saber, enfim, que assume que tanto o conteúdo real da utopia quanto a vontade capaz de impulsionar a ação em função de transpor o que maltrata estão embrenhados em nós, no cotidiano, nos cotidianos, no mundo, na vida, na experiência e na existência humana. Um saber de um caminhar capaz de fundir esperança, ação, saberes e vida. Um andar que sempre produz conhecimento. E um conhecimento capaz de construir justiça cognitiva.
A Pedagogia da Utopia é formada pelos conceitos de Esperança, Educar-se, Justiça Cognitiva e Pedagogia do Cotidiano. Saiba mais abaixo.
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Trecho do segundo capítulo da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra
De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.
Referências e sugestões de leitura
[1] Mbembe trabalha essa ideia a partir do filósofo Fabien Eboussi Boulaga em La crise du Muntu: Authenticité africaine et philosophie, 1977.
Bloch, Ernst (2005 [1959]). O Princípio Esperança. Volume 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro : EdUERJ : Contraponto.
Cunha, Teresa (2014). Never Trust Sindarela. Coimbra . Almedina.
Dussel, Enrique (1998). Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes.
Dussel, Enrique (2009). Política de la Liberación: arquitectónica. Volumen 2. Madrid : Trotta.
Freire, Paulo (2000). Pedagogia da Indignação. São Paulo : Editora da UNESP.
Freire, Paulo (2015). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 22ª ed. – São Paulo : Paz e Terra.
Gutiérrez, Francisco; Cruz, Prado (1999). Ecopedagogia e cidadania planetária. – São Paulo : Cortez : Instituto Paulo Freire.
Mbembe, Achille (2014). A crítica da razão negra. Trad. Marta Lança, Lisboa : Antígona.
Ramose, Mogobe B. (2009). Globalização e Ubuntu in Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, pp. 135-176.
Santos, Boaventura de Sousa (2011). A crítica da razão indolente: Contra o desperdício da experiência. 8. ed. – São Paulo : Cortez.
Walsh, Catherine (2013). Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Tomo I. Quito : Abya-Yala.
Como citar
Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Tiago Mi é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.