Se ferem nossa existência, seremos luta

A descolonização da arte constitui um exercício epistêmico no qual as identidades múltiplas e porosas experimentam, no cotidiano, a libertação das cadeias opressivas, do esquecimento e de uma história que é imposta como uma gaiola de dominação nas áreas colonizadas (Knob, 2019). Nestas práticas, as identidades corpo-territoriais subalternizadas deixam de ser consideradas problemáticas ou patológicas conforme tem sido uma tradição do cânone artístico da modernidade eurocêntrica.

A capacidade de fraturar e incorporar a arte no campo da estética pluritópica cria espaços propícios que nos permitem falar, sonhar e amar; outras formas de relacionamento com as cores e sons; com a intimidade corpo-territorial. Se trata de um conjunto de expressões que possibilitam gerar maior autodeterminação e que frequentemente ocorrem na celebração e na festa contra as formas de silenciamento. Elas incorporam saberes-espiritualidades e erotismo para afirmar um campo de re-existência não só no âmbito artístico, mas também em diferentes esferas de conhecimento colocadas em diálogo.

As práticas artísticas, libertadas da necessidade de consentimento científico-racional, dinamizam as lutas sociais, buscando a fragmentação e o deslocamento das barreiras solidificadas na relação colonizador-colonizado. O grande desafio colocado no campo da descolonização da arte é, portanto, aproveitar os “transbordamentos” disciplinares que ocorrem nas práticas artístico-ativistas. Segundo Karina Bidaseca, essas “etnografias feministas pós-heroicas” mostram “a confluência de narrativas corpolíticas viscerais, corpos abjetos e espaços liminares, com performances e memórias” (Bidaseca, 2018: 168). A pergunta que se coloca é: como ocupar espaços amplos de expressão para possibilitar a reivindicação, o movimento, a capacidade de recuperação e de se revelar diante das múltiplas formas de violência corporal?

Para Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí[1], o pensamento eurocêntrico ocidental usa o corpo para controlar as hierarquias da ordem masculina/feminina, nomeadamente, heteropatriarcal. Para a autora, a noção hegemônica de corpo é construída a partir da ideia de que o corpo físico é uma necessidade do corpo social (2001: 77). Defender esta relação de poder implica determinar um binarismo espacial que sujeita o corpo como primeiro lugar de colonização, nas palavras de Oyěwùmí: “No Ocidente, desde que a questão seja a diferença e a hierarquia social, então o corpo é constantemente posicionado, posto, exposto e re-exposto como sua causa” (2001: 8).[2]

Os corpos[3] constituem o primeiro e o último território em que as relações de poder se manifestam. De fato, separar as pessoas de suas corporalidades implica recair nos dualismos eurocêntricos[4], especialmente o que fragmenta corpo-alma/psique-corpo, reforçando insidiosamente, a naturalização das relações sociais em favor de um dos pares dicotômicos. Ao analisar a exploração do trabalho, é o corpo que é alienado e consumido pelo trabalho forçado; no empobrecimento da sociedade, a fome e a desnutrição afetam diretamente a corporalidade. Nos governos ditatoriais, a repressão, a tortura e o genocídio são estratégias de violência contra a existência do corpo. No gênero e na raça, a referência central pressupõe corpos punidos.

O pensamento dicotômico colonial criou assim corpos sem conhecimento (Gomes, 2002: 42), como Meneses aponta: “Em meio a esse ambiente povoado de novas influências, novos objetos, o corpo, se não protegido, se revela impotente para lidar com essas invasões. O corpo, em poucas palavras, é uma metáfora para a preocupação com às fronteiras sociais e a integridade da cultura da comunidade ” (Meneses, 2015: 205). Um aspecto que também tem sido destacado por Conceição Evaristo, quem a partir de sua experiência em contextos brasileiros lembra que:

Tendo sido o corpo negro, durante séculos, violado em sua integridade física, interditado em seu espaço individual e coletivo pelo sistema escravocrata do passado e, ainda hoje, pelos modos de relações raciais que vigoram em nossa sociedade, coube aos brasileiros, descendentes de africanos, inventarem formas de resistência que marcaram profundamente a nação brasileira (Evaristo, 2009: 18).

Contra o paradigma monocultural dos discursos nortecêntricos nos quais a posse ou ausência de algum tipo de corpo ou partes dele inscrevem diferentes privilégios ou desvantagens sociais, a performance, entendida como a capacidade de agência dos corpos subalternizados, permite modificar esta realidade através de uma corporalidade que expressa as lutas sociais, transcendendo-as. Neste sentido:

Prestar atenção ao corpo pode ser uma estratégia altamente útil (e até mesmo essencial) para reconstruir a subjetividade pós-colonial, porque o discurso imperialista tem sido insidioso e persuasivo na construção do sujeito colonizado como objeto do conhecimento. Como Elizabeth Grosz argumenta, o corpo nunca é simplesmente um objeto passivo sobre o qual regimes de poder são executados (Gilbert; Tompkins, 2002: 204).

Privilegiar os corpos como condição para a produção de conhecimentos, nos quais as emoções e os prazeres, as alegrias e os sofrimentos estão ligados, tem sido uma luta permanente nas áreas colonizadas. Se os corpos são o primeiro lugar onde as cicatrizes da colonização ficam marcadas, eles também se expressam de uma forma potente para a libertação. Assim, a relevância de narrar outras formas de história coletiva e individual expressas em nossos próprios corpos nos permite existir com dignidade no pluriverso cognitivo.

Algumas obras:

Bia Ferreira, Diga Não, Peixe Barrigudo (2016)
Não Recomendados – O Tempo Não Para / Não Recomendado | Sofar Rio de Janeiro (2016):
Artistas fazem performance contra censura no Rio de Janeiro (2018)
Galpão Bela Maré, Metrópole Transcultural (2019)

Fabián Cevallos Vivar

Pos-Doc de Belas Artes pela Universidade de Lisboa, Doutor em Pos-colonialismos e cidadania global pela Universidade de Coimbra e Mestre em Educação Superior pela Universidade de Barcelona. Licenciado em Filosofia, Sociologia e Economia. Seus interesses de pesquisa são: identidades-corporalidades-territorialidades, Teorias poscoloniais, estéticas descoloniais. Alternativas ao capitalismo e heteropatriarcado.


[1] Baseada no estudo da sociedade Yorùbá, Oyěwùmí defende que gênero não é uma noção que atravessa todas as culturas. Para essa sociedade, as hierarquias seriam determinadas por relacionamentos de antiguidade –familiares ou não familiares- isto é, uma categoria altamente relacional e situacional na qual ninguém é permanentemente um velhx ou umx jovem, depende de quem está presente na relação. Assim, a antiguidade não é fixada a partir de uma relação corporal dicotomizada (2001: 42).

[2] Todas as traduções são minhas.

[3] Entendo os corpos desde suas experiências que são, ao mesmo tempo, individuais e coletivas.icas artísticas, agoramentam, noo, cessidade de

[4] Peço emprestado o termo de Carlos Walter Porto-Gonçalves (2018).

Bibliografía:

– Bidaseca, Karina (2008). “Desbordes. Estéticas descoloniales y etnografías feministas post-heroicas”. En Meneses, Maria Paula; Bidaseca, Karina (coord.) (2018). Epistemologías del Sur/Epistemologias do Sul. Buenos Aires. CLACSO. Coimbra. CES. Pp. 165-182.

– Evaristo, Conceição (2009). “Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade”. SCRIPTA. V. 13. N. 25. 2 Sem. Belo Horizonte. Pág. 17-31.

– Gilbert, Helen; Tompkins, Joanne (2002). Post-colonial drama. Theory, practice, politics. London and New York.

– Gomes, Nilma (2002). “Trajetórias escolares, corpo negro e cabelo crespo: reprodução de estereótipos ou ressignificação cultural?”. Revista Brasileira de Educação. N. 21. Pp. 40-51.

– Knob, Tiago (2019). A vida delas e deles, a nossa, na Cidade do Anjo: Uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutorado em Pós-colonialismos e cidadania global. Universidade de Coimbra.

– Oyěwùmí, Oyèrónké (2001). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. University of Minnesota Press. Minneapolis.

– Porto Gonçalves, Carlos (2018). Amazonía: encrucijada civilizatoria. Tensiones territoriales en curso. La Paz. Instituto para el Desarrollo Rural de Sudamérica. CIDES. UMSA.

– Meneses, Maria Paula (2011). “Images outside the mirror? Mozambique andPortugal in World History”. En Human architecture: journal of the sociology of self-knowledge. IX. OKCIR. Pp. 121-137.

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