Um trans em São Miguel

Pessoas transexuais sempre existiram – mas na sociedade moderna é muito recente a possibilidade de falarmos do assunto. Aqui, damos voz a um sãomiguelense que passou pelo doloroso processo de transformação física e psíquica . Pedro Henrique, é com você!

Quem é o entrevistado?

Pedro Henrique Dias Corrêa tem 23 anos e foi o primeiro homem transexual na cidade a ter os acompanhamentos fornecidos pela rede pública de saúde, até a mastectomia (retirada cirúrgica de toda a mama).

Pedro já morou em diversas cidades, uma delas foi Itupeva, interior do Estado de São Paulo, mas é em São Miguel Arcanjo que, junto de sua esposa e família, ainda vive. Pedro Henrique é técnico de turismo, pela ETEC Darcy Pereira de Moraes, em Itapetininga.

Recentemente foi convidado pela Casa GENSEX – NASF, no dia do orgulho LGBTQIA+, para contar o início do processo de transição à realização da mastectomia masculinizadora.

1 – Como foi para você a transição de gênero no meio escolar?

Durante minha fase escolar passei por muitas escolas em várias cidades, até então não havia me “descoberto homem trans”, mas sim lésbica, e não era um problema, até voltar para São Miguel, onde ainda uma cidade arcaica, houve repressão no sistema escolar durante o ensino médio, principalmente vindo de alguns outros estudantes.

A ponto de quando me entendi e me encontrei no fim do 3º ano, por medo eu decidi apenas começar a transição quando me formasse no ensino médio. Porém, no Ensino Técnico, no qual ingressei no ano seguinte, desde a matrícula sempre houve respeito pelos meus direitos, por parte do corpo docente e dos alunos, fazendo com que um ano e meio valesse mais que todos os outros no ensino básico.

2 – Quando começou a perceber quem você era?

Na puberdade existe uma pressão maior na questão de gênero, quase como que te colocassem em caixas, e eu não cabia na que me impuseram, mas tentei entrar, me adaptar, mas aquilo sempre me incomodou, sempre soube que não era eu de verdade, precisei criar um personagem na esperança de me adaptar.

Eu sempre me senti e me vi como um garoto, mas não entendia o que acontecia, como era possível, como eu poderia ser se me diziam o contrário. Taxado como diferente na “grande” Nestor Fogaça, exposto, feito de chacota, o bullying fez com que a pressão social sobre meu jeito e aparência me pressionassem tanto a ponto de eu não conseguir encostar em meus cabelos, (progressivados e longos, aliás, seguindo os estereótipos de nossa sociedade).

Então, cara entrevistadora, imagine como era, para uma pessoa nesta situação, sabendo que não era aquilo, sem o mínimo de referência, ainda tentando se encaixar.

Até pensei que estivesse ficando louco, a ponto de pesquisar, me lembro claramente, “meninos no corpo de meninas”, e encontrei o termo “Transexual”, e a partir daquele momento foi como se tirassem uma venda dos meus olhos, e eu vi que não era louco, que pessoas como eu existiam. Descobri a história de João W. Nery, que me mostrou que nós existimos há muito tempo. Vale ressaltar que embora não façam muitos anos a minha transição, de lá ate hoje muita coisa mudou, não existiam tantas conversas, nada na mídia, na verdade na mídia só existia piadas pejorativas.

Então, se encontrar sem nenhuma referência, era muito complicado. Eu já estava em quadro depressivo, não havia descoberto quem eu era, via o suicídio como uma escapatória, por não ser feliz no que me impunham, e com medo, sem saber para onde ir em uma cidade retrógrada. Depois de descobrir que sou trans, a transição se tornou a minha salvação. Eu renasci e pude viver quem eu realmente sou.

3 – A escola te ajudou a se sentir confortável para se abrir com ela em relação a esse assunto?

Não, a escola sempre transformou em tabu, fazendo com que os dias de pessoas como eu fossem ainda mais difíceis, ao invés de ser fonte de conforto e ajuda.

4 – Como você lidou com os comentários maldosos em relação a isso?

Pessoas maldosas infelizmente sempre irão existir, e cabe a nós decidirmos o que faremos, vamos deixar que abalem nossa luta, ou ignorá-los?

Eu tento ignorar, mesmo que algumas vezes me abale. Me fortaleço com as pessoas boas que me cercam, e o resto se torna tão mínimo!

5 – A sua família te apoiou no processo de sua transição?

Sim, graças a Deus eu tenho uma família incrível, que me ama e apoia em tudo; quando falamos em transição, ela não acontece apenas com a gente, mas também com quem está à nossa volta, e uma adaptação para todo mundo, precisa ter paciência, mas o amor sempre encontra uma forma.

6 – Qual foi o caminho para a sua transformação? Quais as ajudas que você recebeu? O que te motivou a encarar esse processo?

Em minhas pesquisas eu soube que precisava de apoio psicológico, porque a transição é algo sério, que precisa de apoio profissional e eu sempre quis fazer da maneira correta.

O único que eu conhecia era o dr. Edgar, depois de dois encontros ele me colocou em contato com a enfermeira Luciana, que me acolheu e sua esposa, Dra. Amália, fazia parte da reunião da Saúde, me levou como pauta, conseguindo assim os acompanhamentos necessários de psicólogo e psiquiatra no CAPS, no começo fazia também acompanhamento com o endócrino no AME Itapetininga.

Foi uma luta imensa, muitos “Não”, também pelo fato de eu ter sido o primeiro a procurar acompanhamento na rede aqui em nossa cidade; agora vejo outros conseguindo de uma forma mais fácil, me emociona muito. Com

muito orgulho, faço todos os acompanhamentos necessários aqui em SMA, na casa Gensex, que atualmente ganhou prêmio de referencia no estado, com o trabalho que vem desenvolvendo com a comunidade LGBTQIA+.

Fruto da luta especialmente da dra. Amália e enf. Luciana, e da nossa comunidade, que brigou bravamente. Minha motivação maior foi eu saber que precisava disso para conseguir seguir, para conseguir ser feliz, não aguentava mais a tristeza e infelicidade de não poder ser quem realmente sou.

7 – Se você pudesse dizer algo ao Pedro do passado, o que você diria?

Eu com certeza reforçaria o que o Dr. Edgar me disse na primeira consulta, “Um tijolinho de cada vez”. Não pare, não pare, pois vai valer a pena, você vai abrir caminhos e conquistar tudo que sonha. Em frente, em frente sempre!!!

Obrigado pelo convite, me sinto honrado em poder compartilhar minhas experiências com vocês.

Sobre a Casa Gensex

O Grupo de Estudo voltado a Saúde Integral à População LGBTQIA+ (pessoas lésbicas, gays, bissexuais, mulheres e homens transexuais e travestis, queer, intersexo, assexuais e outres mais), foi constituído e vinculado no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de São Miguel Arcanjo.

O intuito deste Grupo de Estudo é concretizar ações, no âmbito de cuidados em saúde, a fim de estabelecer o Comitê Técnico de Saúde Integral à População LGBTQIA+ de São Miguel Arcanjo, com objetivo de estruturar políticas públicas e promover cuidados em saúde a esta população com base nos princípios do SUS, considerando a alta vulnerabilidade e a grande desassistência que contempla este público.

Anally

Anally integra do Conselho de Jovens do OPOCA

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