Uma moldura para um retrato

tudo é poético na medida em que se confessa um destinoBorges.

Assim tem sido os encontros de Mulheres em Prosa, um lugar de construção de uma moldura comum que nos caibam a todas, porque são nesses encontros que as nossas histórias se cruzam e se costuram de alguma forma, dando-nos a sensação de que estamos juntas nos posicionando para um retrato que vai nos ligar para sempre. Um movimento em que nos sentimos parte uma da outra, um exercício de reconhecimentos, tanto entre nós, como entre cada uma de nós e os escritos de poetas que passaram por nós.

Encontro Mulheres em Prosa.

Desde de 2021 estamos construindo este lugar, onde podemos nos abrir, trazendo nossas narrativas, encontrando um campo de cumplicidades, a partir das semelhanças de histórias contadas nos contos, crônicas e diários partilhados, alcançando assim uma intimidade sem corromper a interioridade, como nos fala a filósofa Maria Zambrano, em A metáfora do coração. E foi nesse percurso que Sílvia confessou que agora entende e gosta dos encontros Mulheres em Prosa: “a gente interpreta a história de alguma escrita, as escritas são algo que tem a ver com a gente e com a nossa vida.”

No ano de 2022, começamos nossos encontros, quinzenalmente, às quartas-feiras, das 15h às 17h; durante este período aprofundamos nossa convivência com os escritos de Carolina Maria de Jesus, através de seu Diário, Quarto de Despejo – diário de uma favelada. Com Carolina partilhamos nosso cotidiano, e o contemplamos com graça e lucidez. Com Carolina tivemos muitas verdades e seus escritos entraram em nossas bocas, então mastigamos e repetimos com ela: “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no próximo e nas crianças”. E ruminando esse pensamento da poeta, Sílvia nos devolve outro pensamento: “a fome não se mata só com arroz e feijão, existem diversas fomes”.

Encontro Mulheres em Prosa.

Foi com Carolina que falamos sobre o dia 13 de maio, Carolina escreveu em 1958, “eu lutava contra a escravatura atual – a fome”, e nós chegamos a conclusão, infelizmente, que nos dias de hoje a escravatura atual ainda é a fome. Neste dia, aprendemos muito com Carolina, a poeta mesmo inserida em uma realidade tão difícil, enche nosso coração de esperança, parafraseando a frase de Casemiro de Abreu “Chora criança, a vida é amarga”, nos diz “Ri criança, a vida é bela”. Mas também tivemos um tanto de revolta, por nos vermos dentro de uma sociedade que nos culpa pelas carências que temos, pelas fomes que nos atingem. Então nossa imaginação entra em cena:

– Imagina a Carolina Presidente?

– Ah, teve a Dilma!

– Mas a Carolina iria entender o que a gente passa.

Depois de atravessarmos trechos do diário de Carolina Maria de Jesus, fomos para os escritos do poeta Edmar Conceição, lendo e convivendo com as crônicas do poeta a partir do seu livro Conversas com o meu filho autista. E foi por dentro das palavras de Edmar que abrimos fendas para contemplar a escola, as crianças, as pessoas adultas, o afeto, a diferença, a indiferença, e tudo a partir da perspectiva de Caio e das histórias que Edmar nos ofereceu. Uma experiência sensível que passamos juntas foi o susto de perceber que quem escrevia era um homem, era o pai que nos entregava de forma muito honesta e generosa todo o sentimento vivido na convivência com seu filho Caio. Por último fomos brindadas com um encontro (remoto) com Edmar Conceição, um momento que ampliou nossa sensibilidade e nossa amorosidade em torno da nossa convivência com cada criança que temos em nossas casas, sejam elas especiais ou não, aliás, nesse dia Sônia, Júlia e Cidinha, sensibilizadas pelas crônicas de Edmar, nos fizeram perceber que todas as crianças são especiais.

Encontro Mulheres em Prosa.

Fechamos nosso ciclo de leitura olhando com muito espanto e curiosidade os escritos de uma menina chamada Anne Frank, uma adolescente alemã de origem judaica. Começamos a ler seus escritos do primeiro dia registrado em seu Diário, um presente de aniversário, que Anne batizou de Kitty. Ela sempre começa assim: Querido Kitty. Anneconta tudo que passa pelo seu coração e sua mente, conta o cotidiano, fala de suas experiências nos lugares (na escola, em casa, na rua), e com as pessoas. Anne Frank tinha um jeito muito direto de falar sobre as pessoas (membros da família, amigos, amigas e colegas de escola), que chegava a ser engraçado. Nessa fase da escrita rimos muito com Anne, e brincamos: se seu fosse amiga de Anne Frank o que ela diria de mim?

Fomos seguindo os passos de Anne Frank através dos registros nas folhas em branco de Kitty. O Diário ia aos poucos revelando um destino sombrio, as palavras de Anne ia deixando-nos entrever um temporal que cercava Anne, sua família, e amigos de origem judaica, eles tiveram que viver escondidos, e infelizmente, foram, entregues a Gestapo. Anne foi, posteriormente, levada com sua irmã para Bergen-Belsen, onde morreram. Essa história fez um nó em nossa garganta, e a nossa garganta parecia uma só, com muitos sentimentos represados e o medo de uma neo-ditadura em nosso país.

Encontro Mulheres em Prosa.

Anne Frank escreveu na primeira folha de Kitty, em 12 de junho de 1942, “espero poder confiar-te tudo, como nunca pude confiar em ninguém, e espero que venhas a ser uma grande fonte de conforto e apoio”, e Kitty foi essa fonte de conforto e apoio. Ter as folhas em branco de Kitty para contar-lhe tudo era uma espécie de alívio para Anne e para nós também; para a humanidade, mesmo que dolorosamente, foi uma forma de testemunhar uma história, que nunca, nunca deverá ser repetida.

Encontro Mulheres em Prosa.

Mulheres em Prosa nos abre um lugar, não apensas físico, mas também emocional, para ancorarmos nossas histórias, a sensação é de que o OPOCA é uma espécie de fenda que abrimos na realidade, e como temos o poder de encontrar essa fenda, porque ela existe, nutrimos a sensação de salvação, de moradia, de acolhimento, um lugar de partilha, coletividade e confiança. E é com este clima que nos confessamos entre nós, e como confessamos nosso destino, alimentamos a dimensão poética da nossa história. Fizeram parte dessa roda de prosas, nessa temporada, eu (Maisa), Cidinha, Júlia, Maria José, Sônia, Liana, Amanda, Sílvia, Valéria, e Cristiane.

Maísa Antunes

Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB; Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia – FACED/UFBA – Brasil; Doutora em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, pelo Centro de Estudos Sociais – CES, Universidade de Coimbra – Portugal, defendendo a tese “Diálogos do Riso –  Um campo aberto para repensar a arte e a educação”. Criou em 2018 no DCH III UNEB – Juazeiro – Bahia, onde atua como docente, o projeto de Extensão “Literatura e Vida”.

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