Anda por tua cidade: a construção do novo a partir do cotidiano
Anda por tua cidade. Caminha por seus escombros, por suas belezas, gentilezas, por suas perversidades…. Palmilha essa instância querida…, e sob a garoa ou sol ou sombra encontra, escuta, conversa, vê, diz! Permeia histórias diversas, sente. Percorre vidas alegres, transita por almas machucadas, despedaçadas. Toma os bondes, entra nos bares. Caminha e bebe – partilha!, compartilha. Caminha! Trilha por tuas vontades e pelas necessidades do teu povo. Aprende, educa, se educa. Abraça teus concidadãos e constrói daí, com os olhos de tua gente, o novo.
Anda por tua cidade. Caminha por suas entranhas, por onde a vida acontece e tudo vive, “deseja, estremece, palpita, murmura e sonha”. Vive, pois, o cotidiano. Esse “braseiro de mundos”, de vidas, de encontros que “o tempo não esgota” e “todas se cruzam, beijam, penetram”, se correspondem. Se embrenha por essa “teia vertiginosa de fios sem fim, de fios móveis, ondeantes, cambiantes, urdindo-se ela mesma, na eternidade impenetrável, sem ninguém ver o tecelão” … Tenta ver. Tenta entender… Vagueia por esses espaços onde “rigidez, solidez, inércia, não existem”, porque “na fraga mais dura, no bronze mais compacto circulam desejos, dramas, turbilhões de moléculas e vontades”. E sob os rostos mais alegres ou tristes, falantes ou silenciosos se alicerçam saberes, sabedorias, virtudes, medos, anseios, experiências. Penetra. Convive. Dialoga. É tudo “vago, indistinto, confuso, num rumor longo e subterrâneo. Não se destacam, não se desenham as formas”. Procura. Conhece…. Queiras estar onde estás…
Anda por tua cidade. Olha os rostos, vê as paredes, os grafites… criam, gritam. Ouve as falas, sê as gentes. Esquece tua idade e descrença. Entra no orfanato, convive. Sai dele. Caminha pelas vielas, cortiços, favelas; pelas prisões, escolas e condomínios de grades de ferro, de grades de aço; de cercas elétricas e de câmeras de vigilância. De muros altos de pedras, ignorâncias; de tijolos e preconceitos perscrutando, investigando nos segredos de seus recantos, teus próprios recônditos. Examina no desconhecido, irrefletido ou ignorado da cidade, o seu âmago oculto, pessoal, encoberto. Há sempre relações entre os espaços e as gentes. Entre nós e as perversidades. Entre as bonitezas e nós. E entre nós e os outros. Reconhece.
E “há em cada alma infinidades de almas. E umas tão horríveis e loucas que as escondemos para que as não vejam; e outras tão inconscientes e profundas que, habitando conosco, as não chegamos sequer a conhecer”. Conhece, então, discerne. Há outras corajosas que havemos de as deixar transparecer e agir; e ainda outras rebeldes que se as deixarmos aprender, falar e interagir, vão ganhando força e saberes enquanto caminham; e outras ainda cautelosas e pacientes que havemos de as deixar nos conter, manter, resistir, persistir, esperar.
Adentra, reflete, conhece. É com extrema dificuldade que o olhar interior projeta sobre si mesmo uma luz (Bloch, [1959] 2005: 132). Projeta, pois, essa luz e confessa. Mas se empenha por confessar uma “confissão verdadeira, plena, absoluta”, tal qual a filósofa que “a música misteriosa do universo” ela sente; ou como o poeta que no coração “repercute a dor eterna da natureza”, e que “ao cabo de oscilações, dúvidas e desânimos, coordena a idealidade do ser com as aparências do ser, o espírito com as formas”. Percebe nas essências as formas que elas adquirem; e nos contornos que se desenham, encontra o seu eu oprimido e o seu eu opressor.
É pelo fato de se voltar sobre si mesmo que o olhar franco e aberto é comprovado (Bloch, [1959] 2005: 164). Procura, então, as cores e as sombras que as formas vão herdando e com a força que a nitidez oprime, se esforça por libertar um superando o outro (o oprimido e o opressor). São muitos e complexos. As máscaras são brancas mesmo em peles negras; e os jeitos e os trejeitos são do patriarca, dono de tudo, do capital e de toda a gente, mesmo em corpos pobres e de mulheres jovens. E uns se sustentam nos outros e por vezes vivem todos entrelaçados entre eles. Apreende. Confessa mesmo que se em silêncio for e começa por superar em si o que no sistema, nas estruturas, nas instituições, no cotidiano, nega, castiga e, em última instância, mata. Liberta em si o que permite à vida viver. Permite deixar formar o que afirma a vida humana. Deixa essa essência ganhar forma e deixa a forma ser regenerada por essa essência que, enquanto caminha e absorve, também vai se regenerando.
Anda, pois, por tua cidade enquanto aprende, ensina, desaprende, se educa. Caminha enquanto faz e se refaz. Permanece viva! Permanece vivo! O cotidiano, assim como nós, é um emaranhado contraditório de nós. Um e outro são espaços privilegiados da utopia.
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Referências
Texto inspirado no poema Querência de Rodrigo Castro Francini.
Bloch, Ernst (2005 [1959]). O Princípio Esperança. Volume 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro : EdUERJ : Contraponto.
As frases “entre aspas” são de: Junqueiro, Guerra (2017). Prefácio. In: Brandão (2017), Os Pobres. Guimarães : Opera Omnia, pp. 9-22.
Texto extraído e adaptado da tese de doutorado A Vida Deles e Deles, a nossa, Na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, de Tiago Miguel Knob e desenvolvida no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal a partir e com as nossas lutas em São Miguel Arcanjo, SP, Brasil. Para ler, vá em Publicações.
Como citar
Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.