A Cidade do Anjo

SÃO MIGUEL ARCANJO, A CIDADE DO ANJO

UMA CRÍTICA ÉTICA COMO UM MOMENTO DE LUTA PELA VIDA

A cidade de São Miguel Arcanjo é rodeada por fazendas, grandes produções da monocultura agrícola e por reservas de Mata Atlântica intocadas, região reconhecida como um dos mais importantes refúgios de vida silvestre do planeta, e que recebeu, inclusive, por essa importância, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura em 1999, o título de Sítio do Patrimônio Mundial da Humanidade. A mesma região é conhecida e reconhecida, também, como o Cinturão da Miséria do Estado de São Paulo. Uma realidade, aqui, com seus pouco mais de 33 mil habitantes, movida também por sua forte tradição político-religiosa, que elevou, em 21 de setembro de 2013, sua igreja matriz a santuário de seu padroeiro, o Arcanjo Miguel. Foi quando nós elevamos nossa cidade à Cidade do Anjo.

Miguel é um arcanjo nas doutrinas religiosas judaicas, cristãs e islâmicas e considerado, por tais, o líder do exército de Deus, das forças celestes, na guerra contra as forças do mal. Uma força descrita no livro Apocalipse quando em batalha nos céus, comandando a legião dos anjos de Deus, vence Lúcifer: “Houve no céu uma guerra, pelejando Miguel e seus anjos contra o dragão. O dragão e seus anjos pelejaram, e não prevaleceram; nem o seu lugar se achou mais no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, aquele que engana todo o mundo; sim, foi precipitado na terra, e precipitados com ele os seus anjos”.

Miguel pode significar em hebraico “aquele que é similar a Deus” ou o que questiona “quem como deus” (mi-“aquele/quem”, ka-“como”, El”deus”), e é o mencionado, na Bíblia Hebraica, como o Arcanjo que se levantará diante das injustiças e a favor dos filhos de seu povo quando o tempo de tribulação chegar, como anuncia o Profeta Daniel: “Nesse tempo se levantará Miguel, o grande príncipe que defende as crianças do seu povo…”

Aqui, nesse nosso tempo de tribulações, nada mais distante é o que acontece na cidade comanda por seus homens e mulheres, muito em especial homens e, agora, portanto, sede do santuário do Arcanjo em que boa parte de seu povo, inclusive muitos de nós, deposita sua fé. Assim, como em tantos outros cantos do planeta em que as contradições e as injustiças são visíveis aos olhos atentos – cada um da sua forma – nesse canto, as contradições se tornam ainda mais evidentes: a Cidade do Anjo, de suas belezas, riquezas e de sua fé, é também uma das mais cruéis cidades de um dos estados mais injustos de um dos países mais desiguais do planeta, cujas principais vítimas são as próprias crianças do seu povo.

Apesar de adentrar a segunda década do século XXI como o terceiro maior PIB agropecuário do Estado de São Paulo, São Miguel Arcanjo, segundo o IBGE, possuía o dobro da sua média de extrema-pobreza, e, segundo a Fundação Seade, estava entre as suas cidades mais desfavorecidas socialmente: em níveis de renda, educação e saúde, numa escala de um a cinco, quando um representa melhores indicadores sociais e cinco piores, São Miguel Arcanjo ocupava, na década citada, o grupo cinco.

Com cerca de 35% (11.089 pessoas) da população em condições de alta vulnerabilidade social e outros 35% (10.835 pessoas) em situação de vulnerabilidade social, o município possuía os piores níveis de desenvolvimento humano do Estado de São Paulo: o IDH de São Miguel Arcanjo ocupava a posição 534 das 645 cidades paulistas analisadas pelo IBGE.

Ainda, segundo o IBGE, em 2020, o salário médio mensal da população era de 1.8 salários mínimos. A proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 13.7%. Na comparação com os outros municípios do estado, ocupava as posições 568 de 645 e 522 de 645 cidades respectivamente. Considerando domicílios com rendimentos mensais de até meio salário mínimo por pessoa, tinha 38.6% da população nessas condições, o que o colocava na posição 60 de 645 dentre as cidades do Estado, ocupando, portanto, espaço entre as cidades com os piores indicadores no quesito.

Movida essencialmente por uma economia baseada na grande produção da monocultura agrícola, a exploração do trabalho infanto-juvenil em algumas lavouras do município e de cidades vizinhas promove não apenas a violência de um dos trabalhos mais prejudiciais para a saúde humana segundo a OMS (a colheita de raízes, em especial, em São Miguel Arcanjo, da batata), mas, dentre outras mazelas, índices acima das médias estadual e nacional de evasão e exclusão escolar: cerca de 70% da juventude de São Miguel Arcanjo entre 18 e 24 anos não concluiu o ensino médio na última década.

Castigada por um modelo político, econômico e social compreendido pelo Observatório Popular Cidade do Anjo como Agrossistema, a grande quantidade de pessoas em situação de vulnerabilidades sociais, a cultura do patriarcado e do racismo, a limitada quantidade de programas de prevenção, proteção e atendimento à criança e ao adolescente, reproduzem diversos tipos de violências no seio das comunidades como a exploração sexual de meninas e meninos, a violência de gênero, a ampla presença do crime organizado do tráfico de drogas, a insegurança alimentar e nutricional em diversos graus de dramaticidade humana, chegando à desnutrição e à fome, dentre outras. Como medida dessa realidade, apontamos, no mesmo período de pesquisa citado, a média de gravidez na adolescência como quase o dobro da média do Estado, e a quantidade de jovens de São Miguel Arcanjo em medida socioeducativa em meio fechado equivalente a cidades com até 100 mil habitantes. Segundo dados do Conselho Municipal de Assistência Social, 95% desses jovens foram detidos por envolvimento com o crime organizado do tráfico de drogas.

Como um canto oculto e possuindo um dos piores indicadores sociais do Estado de São Paulo, a infância e a juventude da cidade de São Miguel Arcanjo estão entre as principais vítimas da ausência de políticas públicas, recursos, projetos e programas de proteção, cuidado, prevenção e alternativas às realidades que as ferem e às impulsionam para uma precária saúde mental/emocional; para a auto mutilação, suicídio e tentativa de suicídio; para o crime organizado do tráfico de drogas; para a exploração do trabalho; para a exploração sexual; para a ausência de perspectivas e sonhos, dentre tantas outras violências.

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