Pedagogia da Utopia

PEDAGOGIA DA UTOPIA

ESPERANÇA

Introdução: os momentos para uma pedagogia movida pela esperança

A esperança fraudulenta é uma das maiores malfeitoras, até mesmo um dos maiores tormentos do gênero humano, e a esperança concretamente autêntica, a sua mais séria benfeitora. Ernst Bloch.

A esperança corresponde àquele apetite da alma que as mulheres e os homens não só possuem, mas no qual consistem essencialmente como seres não-acabados. Ela é esse afeto da espera contra a angústia e o medo diante da vida e, por isso, o mais humano de todos os movimentos do ânimo e corresponde, ao mesmo tempo, ao mais universal e lúcido dos horizontes (Bloch, [1959] 2005: 77). E ela, a esperança, precisa ser nutrida de realidades, do real, da ação, dos saberes, poesias, de conhecimentos, da práxis, que é para ir se tornando, enquanto nos move, cada vez mais fecunda.

A utopia diante das violências da cidade de São Miguel Arcanjo, a Cidade do Anjo, precisa juntar à esperança que nos suporta, a inserção crítica e profunda no cotidiano, que é o que nos dá concretude à esperança e conteúdo ao pensar, e a construção de justiça cognitiva, que é o que nos torna capazes de fortalecer a utopia e desenvolver o andar. Um caminhar movido pelo educar-se, essa capacidade intrínseca do ser humano em ser, fazer e se refazer como humano e vivente no mundo enquanto caminha. São estes os momentos de uma pedagogia movida, portanto, pela esperança.

Para o pensador, “a utopia é a exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, só porque existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem direito de desejar e porque merece a pena lutar” (Santos, 2013: 280). Quase todas elas “são críticas implícitas da civilização em que se enquadram e representam também uma tentativa de revelar potencialidades ignoradas pelas instituições em vigor ou soterradas debaixo de uma espessa crosta de costumes e tradições” (Mumford, [1922] 2007: 10); de mitos e farsas; de violências que ocultam as resistências, as potências, as alternativas que sobrevivem apesar das ideologias que encobrem, escondem, impedem, maltratam. Como escreve Bloch, “como nenhuma exploração deve se deixar ver nua, ideologia é, por esse lado, a soma das representações em que cada sociedade se justificou e se transfigurou com o auxílio da má consciência” ([1959] 2005: 153).

A utopia, portanto, é crítica porque não é ingênua, nem impossível, nem ilusória. Vasculha o real. Desconstrói, desmistifica, media as suas possibilidades. Assim como a esperança não é fundamentada em uma espera vaga, pura, vã. A esperança, consciente, crítica, é um ato que não resigna, não teme, aprende a esperar: “colocada acima do ato de temer, não é passiva como este, tampouco está trancafiada em um nada” (Bloch, [1959] 2005: 13), ajustada à espera da ordem, da morte. Ela sai de si mesma, escreve Bloch, e amplia as pessoas ao invés de estreitá-las; lança-as ativamente naquilo que elas vão se tornando e do qual elas próprias fazem parte ([1959] 2005: 13) enquanto vão mediando o real, sendo também mediadas por ele, construindo um caminhar em função de uma vida que faça sentido viver.

Em um mundo que absolutamente não é o nosso, como mais ou menos disse certa vez Criolo, a esperança e a utopia são vitais: ou a gente imagina, sonha com uma esquina, uma rua, um bairro, uma cidade, um mundo em que a criança, a gente, possa viver e viver bem, e caminha para construí-los – aprendendo a construir – ou permanecemos impedidos de ser. Diante do real, e nessa relação direta entre estudo e vida, práxis, individual e coletivo, educarse, a utopia vai fortalecendo o seu sentido, a esperança a sua concretude e vice-versa. Como diz Paulo Freire, precisamos da esperança crítica como o peixe necessita da água despoluída. Sobre a necessidade da utopia crítica, acredito ser o mesmo:

“Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O essencial […], é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã” (Freire, 2015: 15).

O que importa, portanto, é saber sempre mais sobre elas, sobre nós e o real. Um saber capaz de manter a esperança e a utopia direcionadas de forma clara e solícita (Bloch, [1959] 2005: 14). Trata-se, aqui, de uma pedagogia que permita a produção de um saber capaz de ir enriquecendo a utopia e de ir fortalecendo a esperança enquanto caminham as pessoas, as gentes do cotidiano da cidade de São Miguel Arcanjo, a Cidade do Anjo, hoje e amanhã: “uma compreensão profunda da realidade é essencial ao exercício da utopia, condição para que a radicalidade da imaginação não colida com o seu realismo” (Santos, 2013: 280) e para que a radicalidade da vontade não se manifeste em nenhum tipo de voluntarismo. Trata-se, enfim, nesse estudo, da práxis da nossa ação social em curso e de uma pedagogia que nos ajude nessa intenção.


A Pedagogia da Utopia é formada pelos conceitos de Esperança, Educar-se, Justiça Cognitiva e Concretude Histórica: Cotidiano. Saiba mais abaixo.

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Trecho do segundo capítulo da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra

De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.

Referências e sugestões de leitura

Bloch, Ernst (2005 [1959]). O Princípio Esperança. Volume 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro : EdUERJ : Contraponto.

Freire, Paulo (2015). Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 22ª ed. – São Paulo : Paz e Terra.

Gutiérrez, Francisco; Cruz, Prado (1999). Ecopedagogia e cidadania planetária. – São Paulo : Cortez : Instituto Paulo Freire.

Mumford, Lewis (2007 [1922]). História das Utopias. Trad. Isabel Botto. Lisboa : Antígona.

Santos, Boaventura de Sousa (2013). Pela mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade. Coimbra : Almedina.

Como citar

Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Autor

Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.

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