Introdução: uma carta ao arcanjo miguel, parte 2

INTRODUÇÃO: UMA CARTA AO ARCANJO MIGUEL

PARTE II

A cidade de São Miguel Arcanjo é rodeada por fazendas, grandes produções da monocultura agrícola e por reservas de Mata Atlântica intocadas, região reconhecida como um dos mais importantes refúgios de vida silvestre do planeta, e que recebeu, inclusive, por essa importância, da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura em mil novecentos e noventa e oito, o título de Sítio do Patrimônio Mundial da Humanidade (Galvão, 2012: 12). A mesma região é conhecida e reconhecida, também, como o Cinturão da Miséria do Estado de São Paulo. Uma realidade, ali, com seus pouco mais de trinta e um ou trinta e dois mil habitantes, movida também por sua forte tradição político-religiosa, o que elevou, em vinte e um de setembro de dois mil e treze, sua igreja matriz a santuário de seu padroeiro, o Arcanjo Miguel. Foi quando nós elevamos nossa cidade à Cidade do Anjo.

Miguel é um arcanjo nas doutrinas religiosas judaicas, cristãs e islâmicas e considerado, por tais, o líder do exército de Deus, das forças celestes, na guerra contra as forças do mal. Uma força descrita no livro Apocalipse do Antigo Testamento quando em batalha nos céus, comandando a legião dos anjos de Deus, vence Lúcifer: Houve no céu uma guerra, pelejando Miguel e seus anjos contra o dragão. O dragão e seus anjos pelejaram, e não prevaleceram; nem o seu lugar se achou mais no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, que se chama Diabo e Satanás, aquele que engana todo o mundo; sim, foi precipitado na terra, e precipitados com ele os seus anjos.

Miguel significa em hebraico “aquele que é similar a Deus” (mi-“quem”, ka-“como”, El-“deus”). É também considerado o modelo angélico para as virtudes do guerreiro espiritual nas batalhas internas de cada ser humano entre o bem e o mal e mencionado, no mesmo Antigo Testamento, a Bíblia Hebraica, como aquele que se levantará diante das injustiças e a favor dos filhos de seu povo quando o tempo de tribulação chegar, como anuncia o Profeta Daniel: Nesse tempo se levantará Miguel, o grande príncipe que defende as crianças do seu povo

Aqui, nesse nosso tempo de tribulações, nada mais distante é o que acontece na cidade comanda por seus homens e mulheres, muito em especial homens, autoproclamados cidadãos de bem; agora, portanto, sede do santuário do Arcanjo em que boa parte de seu povo, inclusive eu, deposita sua fé. Assim, como em tantos outros cantos do planeta em que as contradições e as injustiças são visíveis aos olhos atentos – cada um da sua forma – nesse canto, as contradições se tornam ainda mais evidentes: a Cidade do Anjo, de suas belezas, riquezas e de sua fé, é também uma das mais cruéis cidades de um dos estados mais injustos de um dos países mais desiguais do planeta, cujas principais vítimas são as próprias crianças do seu povo, num ambiente, porém, que reage. E reage, também, na Cidade do Anjo, em reza.

Aguardamo-Lo, Miguel, em reza.

Mas nos cantos e becos, centros, campos, praças e territórios, no sagrado. Nas casas amarelas, azuis e verdes, nas casas da mata, esses espaços da utopia, santuários nossos, vivificando e sublimando: “o sagrado é consistente e é onde se afirma ir buscar força, sentido, coragem, energia, discernimento, vigor e autoridade para poder enfrentar o melhor e o pior das coisas que acontecem”, como escreve Teresa Cunha (2014: 223). Nos fortalecemos também na ordem do invisível, naquilo que não se pode apalpar, naquilo que está para além do pó que se vê e sente, naquilo que é tão verdadeiro e real que é capaz de inspirar e alimentar o cotidiano e a imparável busca de senhoras, meninas e meninos pela sua libertação (Cunha, 2014, 223). É o sagrado, a experiência da espiritualidade, aquilo que é a alma dos dias e das esperanças, dos sentidos, das energias e dos significados que nos damos e damos ao mundo, acessível a todas as pessoas e, por tal, intrinsecamente democrático apesar da sua intocabilidade (Cunha, 2014: 223), e, em sua intocabilidade nos fortalecemos, persistimos, reagimos, tocamos o real e aguardamo-Lo, pois, também em reza.

Em reza, mas em reza chorada, fértil, vívida. Reza chorada. De lágrimas reais, de alegria, de dor e de fé. De anúncios e denúncias; de diálogos, encontros e esperanças; de luta; de “lágrimas fecundas, que fazem parir a terra, palpitar o seio e germinar a semente. Lágrimas de aurora, orvalho vivo e criador. Rezar e chorar, mas heroicamente, na ação e na luta, no mundo e para o mundo”, tal qual o filho de Alcinda, “entre o fogo ardente e a batalha”. “Quem se quiser salvar, há de se salvar com os outros” (Junqueiro, 2017: 21): Somo em todos vamos lutar para ganha a guerra que todos estao passado na terra… mais sou uma pessoa pode ajudar… deus… quem confia em deus ganha a querra… a fome crisce… morte… priscipalmente educação… as pessoa nao nasceu para ser maltratadas pelo mundo… vamos ajudar o mundo que estamo vivendo. thiago passa esse comentaro para todo que voce conhece ta… eu que tou fazendo essa mensage ta. Me escreveu Gustavo do Nascimento de dezesseis anos, filho de Alcinda, irmão de Kauane, Kauan, Ananda e Augusto. Essa gente da utopia da Cidade do Anjo.

Autor

Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.

Continue lendo

Trecho da Introdução da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra

De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.

Referências e sugestões de leitura


Cunha, Teresa (2014). Never Trust Sindarela. Coimbra . Almedina.

Galvão, Júlia Marques (2012). Turismo Religioso e Romarias: Um estudo sobre o perfil do romeiro de Bom Jesus de Iguape (SP). (Monografia apresentada na Universidade Federal de São Carlos). Sorocaba. UFSCAR.

Junqueiro, Guerra (2017). Prefácio. In: Brandão (2017), Os Pobres. Guimarães : Opera Omnia, pp. 9-22.

Como citar

Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Comments are closed.

  • observatório popular cidade do anjo