Uma carta ao Arcanjo Miguel, Parte I

INTRODUÇÃO: UMA CARTA AO ARCANJO MIGUEL

PARTE I

Síria. Rio de Janeiro. Palestina. Brasil. Mães de Maio. São Paulo. Marielle. Jaqueline. Fortaleza. Congo. O que é um texto diante do real? O íntimo da Cidade do Anjo nos liga à humanidade. O cântaro quebrado de um sonho se espalha e cresce nos degraus do templo. E entre as rachaduras da construção antiga as mirtáceas brotam em direção ao sol. Semeia. É a utopia, a humanidade reagindo. Caminha. No passo entre o corpo e a palavra, um respiro. No respiro entre o dito e a fala, um silêncio, um descanso, um refugo. A verdade, a utopia, a esperança, a vida. Uma fé nas coisas que pensam, cantam, dançam. A ira, Miguel, atilada, impeliu mais do que eu gostaria a escrita das páginas que seguem.*

“Um gesto de escrita empenha-se completamente numa força, num diferendo” (Mbembe, 2017: 8); e “a função da língua passa por trazer à vida aquilo que fora abandonado às forças da morte” (Mbembe, 2017: 16). “Na era da Terra, precisamos mesmo de uma língua que constantemente fure, perfure e escave como uma broca, saiba ser projétil, uma espécie de direito absoluto, de vontade que, incessantemente, atormente a realidade” (Mbembe, 2017: 250). É a denúncia, o anúncio, a revolta, consciente, na escrita, na arte, na fala. No ato… Mesmo antes de ouvir a própria voz, os sons envolvem-se na boca. “A sua função […] não é apenas a de fazer soltar os cadeados, mas também de salvar a vida do desastre que assoma” (Mbembe, 2017: 250). É uma crítica ética à realidade.

Na cidade do Arcanjo Miguel, sob a mecânica celeste, somos a costura imperfeita, o espetáculo doloroso da decomposição de deus. Nossa igreja não é mais das mais belas. Há lanças e grades. O preconceito e o seu sustento, a ignorância, não são só o que a envolve tal como era antes. Para inibir os marginais a cerca, ali, elétrica, mantém a santa confinada, e apenas quem detém a chave pode levar a ela as suas orações e as suas súplicas, como percebeu uma juventude atenta. Ao seu redor, o perfume das flores das árvores antigas como a nossa história deu lugar ao mormaço do cimento tão moderno quanto é o seu prebendário, a estupidez. E a consciência, se é que um dia houve, deu nos arredores da igreja o seu espaço ao comércio. Mas ao comércio da própria igreja, não ao do povo que cria, trabalha, lamenta. Vendem-se camisetas com o Seu desenho. Cafés, águas, santas e bentas. Joias e canecas com símbolos, para muitos, sagrados – tal como condenou Jesus, certa vez, se não me engano. E a miséria, simbolizada no rosto da criança, permanece distante, num rural longínquo e num urbano oculto, suportando no corpo o corpo luxuoso do senhor, a cocaína, o tomate, a batata, a madeira sem amparo, sem cuidado, sem abrigo, sem santa, súplica ou oração.

São as contradições, as injustiças, as perversidades da cidade do Anjo, da cidade delas, deles, da nossa cidade, da minha, nos corpos que por ali crescem, vivem, sobrevivem…. Foi ali que eu nasci e é com essa gente, humana, real, a nossa gente, inteira, que a gente convive, caminha, constrói, transforma… E tal como escreveu o poeta, dá-me trabalho sair dali, enquanto caminho para voltar.

Nesses escritos, que são esse caminho de volta, ou de presença, a realidade e a vida são os conteúdos, as sujeitas, as presenças…. E a denúncia e o aúncio, a utopia, a nossa, é a fonte das reflexões. Enquanto saio para escrever o que segue, colho aquele fruto que conserva parte da sua flor, para esmaga-lo e prender-lhe o gosto entre os dedos e o verso, entre o coração e a mente, o corpo e a alma…. E nesse caminho, nessa escrita, distante um oceano, sustentado por nossas relações e apaziguado por conversas, cuidados, carinhos, apesar de a ira aparecer por tantas vezes, nalgumas quieta, noutras embrenhada à angústia, noutras ainda sendo absorvida pela paz que a própria utopia permite, é um outro sentimento, é um sentido mais profundo o sentimento mais forte, primeiro, que moveu esses escritos, o fundamento que suporta todo o resto, o sentido que se traz junto à pele, tatuagem que muda e prossegue, transforma o corpo como são transformadas as coisas que se movem impressionadas, que sustenta a persistência, a perseverança, a esperança, paciente…, que ampara, defende, ancora, enfrenta inclusive o tempo…. Não é a ira apesar de justa, acredito.

As reflexões, os porquês e sobre o que pensar. Como e por que escrever. O que move, fundamenta, movimenta: um silêncio, na Cidade do Anjo, ensurdecedor. A fé, a luz sacrílega que defende a incompreensão das coisas. A fala, um discurso imóvel que reforça o porquê de ser assim: abismos, muros, mitos, labirintos. Na cidade do Arcanjo Miguel, as injustiças vistas a olho nu são elevadas pela amizade silenciosa do proveito próprio. E a indignação expressa, alta e aberta à presidente eleita distante alguns estados, não é assim tão furiosa em jantares alegres em casa, em conversas fraternas com o bandido (presente ou futuro ex-qualquer coisa) que arranca, ali, um sonho de criança.

São os arquitetos e os comparsas da fome. Os guardiões de uma realidade constituída por um sistema político, social, cultural marcado pela corrupção que castiga, produz e reproduz perversidades, sofrimentos, injustiças e, em última instância, mata e tem matado. Um certo tipo de Agro-sistema, um emaranhado de forças, de produções da monocultura rural, de espectros e vultos, assombrações; de poder político e campanhas eleitorais, instituições e fé; mercado, miséria, mitos e riquezas que alimenta, no real, a fome cotidiana da criança, a exploração do seu corpo, a violência, o crack, o abandono puro. A cidade, movida por suas forças, silenciada pelos seus e camuflada por seus mitos, não oferece à menina a possibilidade de viver com sentido. Por um lado, porque é ingênua e estúpida, por outro, covarde, estratégica e cruel porque necessita dessa criança para a colheita da sua riqueza, da sua uva, da sua batata, para carregar a madeira… e é preciso, aos que restam, admitir que falhamos, como disse certa vez um professor ainda jovem desse nosso andar… Nós precisamos nos denunciar a nós mesmos e anunciar um novo mundo*…

Autor

Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.

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Trecho da Introdução da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra

De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.

Referências e sugestões de leitura


*As frases em itálico escritas em toda essa Introdução são do poeta português Diogo Vaz Pinto, retiradas de diversos pontos do seu livro Ultimato (2018).

*Em referência ao texto de Rodrigo Castro Francine, membro de nossa utopia, “Uma palavrinha aos ex-prefeitos de hoje e de amanhã” escrito em março de 2017. Texto e vídeo acessíveis em: https://www.opoca.org/midiaopoca/2017/09/10/14/.

Mbembe, Achille (2017). Políticas da Inimizade. Trad. Marta Lança, Lisboa : Antígona.

Como citar

Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

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