Perscrutando

PERSCRUTANDO EM SEUS RECANTOS TEUS PRÓPRIOS RECÔNDITOS

O “NOVUM” MEDIADO, COM CUIDADO E ENTRE AS GENTES

Caminha porque, “enquanto a realidade não for completamente determinada, enquanto ela contiver possibilidades inconclusas em novas germinações e novos espaços de conformação, enquanto for assim”, escreve Bloch, “não poderá proceder da realidade meramente fática qualquer objeção absoluta contra a utopia”. Contra utopias malfeitas, isto é, “contra aquelas que divagam abstratamente, incorretamente mediadas”, poderá haver objeção. Contudo, segue o autor, “exatamente a utopia concreta tem na realidade do processo um correspondente: o do novum mediado” ([1959] 2005: 195), com cuidado e entre as gentes.

Mediação do ser humano com o mundo em aberto; com a história como processo e o processo não como progresso, como algo linear, com o fim programado, mas como realidade inacabada a ser construída, com cuidado; com o dado não como encerrado, mas como o estar sendo construído. Mediação do ser humano consigo mesmo, com as outras, com os outros, com a gente, com os seres inacabados que, com o mundo também inacabado, constroem o que está por vir, mais uma vez, com cuidado[1].

Com cuidado porque os sonhos dispersos, desfeitos, despedaçados carecem de atenção, de cuidado, de carinho, de água. O ser humano carece de atenção, de afeto, de vínculos, de alimento. As situações-limite de crianças, homens, mulheres, jovens, velhas, senhores demandam cuidado, carinho, afeto, conhecimentos, técnicas, segurança, quem sabe amor, fé, casa. O destino não está pronto, não está dado, não está escrito; pode ser rabiscado, imaginado, desenhado, construído; nunca com certezas sobre o que vem; mas esse via-a-ser pode ser mediado por ele, ser humano, por ela, pelos outros, pela realidade ao redor que também pode ser mediada, modificada, e que quando diferente, pode mediar de maneira diferente as mulheres, homens, crianças, jovens, velhos, senhoras.

Nada circularia exteriormente no mundo se o interior do ser humano fosse totalmente estanque; se não houvesse esperança, vontade, desejo. O ser humano é um ser para a vida, provedor da história, da cultura, do social, da política, da economia, da arte. O sonho é também um motor da história. A dignidade humana também é fonte de transformação. A busca pela restauração da dignidade arrancada é a derradeira fonte do novo. E no ser humano “nada circularia interiormente se o exterior fosse totalmente estanque”, escreve Bloch. E do lado de fora “a vida é tão inconclusa como no eu que opera nesse lado de fora”, continua o autor ([1959] 2005: 194). Há potencialidades adormecidas, castradas; há realidades possíveis escondidas, violentamente silenciadas; há saberes necessários a uma existência humana que faça sentido à existência humana desconsiderados. Há compaixões depreciadas; egoísmos glorificados; solidariedades incompreensíveis, menosprezadas; indiferenças louvadas; honestidades injustiçadas; corrupções admiradas, desejadas. É preciso estar atento, ter cuidado, permanecer viva, vivo. O cotidiano, assim como nós, mais uma vez, é um emaranhado de nós. Um rebuscado processo de contradições. Um local privilegiado da utopia.


Saiba mais sobre a filosofia que fundamenta a metodologia da nossa utopia.

Continue lendo

Trecho do primeiro capítulo da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra

De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.

Referências e sugestões de leitura

[1] A partir da axiologia do cuidado (Santos, 2006).

Texto inspirado no poema Querência de Rodrigo Castro Francini.

Bloch, Ernst (2005 [1959]). O Princípio Esperança. Volume 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro : EdUERJ : Contraponto.

Como citar

Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Autor

Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.

Comments are closed.

  • observatório popular cidade do anjo