Perscrutando, parte 2

PERSCRUTANDO EM SEUS RECANTOS TEUS PRÓPRIOS RECÔNDITOS (PARTE II)

“A GENTE” DO COTIDIANO: O “POVO” COMO UMA CATEGORIA POLÍTICA

O cotidiano é onde as gentes vivem; o lugar do povo. Do poder originário da política e do ator coletivo político da utopia. Ninguém pode se sentir mais confortável no cotidiano do que essa gente, a gente, nesse nosso espaço ainda de liberdade, porém, por vezes, quase que subterrâneo e que exige, por tal, um dizer silencioso… sussurros. A potentia, escreve Dussel, é o poder político originário imanente à comunidade; uma “faculdade ou capacidade inerente a um povo enquanto última instância da soberania, da autoridade, da governabilidade, do político” (2007a: 29): o poder político originário é “tido sempre e somente pela comunidade política, [pelo] povo. Ele o tem sempre, embora seja debilitado, acossado, intimidado, de maneira a não poder se expressar” (Dussel, 2007a: 28). Daí a necessidade da cautela, dos sussurros, dos silêncios. Mas também das festas, das celebrações, dos sorrisos que é, para além de se alegrar e se articular enquanto dança, para confundir o inimigo[1].

Daqui então se constrói a utopia. Se articula, vai-se fortalecendo as pessoas. Constrói comunidade, fortalece a potentia. Das beiradas. Das esquinas. Das periferias. Mas também dos centros. O povo na utopia é uma categoria política[2]. Aquela massa complexa da sociedade, ambígua por vezes, formada pelas necessidades não satisfeitas pela ordem vigente e que estabelece, mesmo que em um primeiro momento não conscientemente, uma fronteira ou fratura interna na comunidade política hegemônica (Dussel, 2007a: 93). São as gentes da utopia, esse emaranhado ainda indeterminado de um povo, de alguns ou de muitos povos que vão se encontrando, conversando, criando laços, construindo o comum, constituindo, enquanto caminham, um nós: a gente do cotidiano.

Há de se observar também as professoras, os professores, as juventudes de todos os lados, comerciantes um pouco mais atentos, funcionários públicos descontentes, religiosas que de alguma forma sentem que falta algo nas pregações dos padres e pastores e que as orações apenas não são suficientes para se construir justiça. Caminha e aprende com as mães da batata, da uva, com as catadoras de recicláveis. Com os pais e jovens braçais. Com os meninos do tráfico, com as meninas da zona. Com os moradores de rua. Com as famílias da agricultura familiar. Apreende, constrói, troca, cria. Constitui um nós político nesse emaranhado contraditório de vivências. Num cotidiano difuso e complexo nem todos os que possuem algum tipo de privilégio se contentam em conservar o que está dado. Assim como carregar todo o peso das injustiças humanas nas costas não significa querer lutar para superar as forças que oprimem.


Saiba mais sobre a filosofia que fundamenta a metodologia da nossa utopia.

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Trecho do primeiro capítulo da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra

De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.

Notas

Texto inspirado no poema Querência de Rodrigo Castro Francini.

[1] Do poema sem nome de Sérgio Vaz: “Sorrir enquanto luta é uma ótima estratégia / para confundir os inimigos”.

[2] Dussel utiliza um discurso de Fidel Castro para apoiar essa definição de povo na ação política: “Entendemos por povo, quando falamos de luta, a grande massa resoluta […], que anseia grandes e sábias transformações de todas as ordens e está disposta a obtê-las, quando acredita em algo e em alguém, sobretudo quando crê suficientemente em si mesma […] Nós chamamos povo, se de luta se trata, os 600 mil cubanos que estão sem trabalho […]; os 500 mil operários do campo que moram em cabanas miseráveis […]; os 400 mil operários industriais e trabalhadores braçais […] cujos salários passam das mãos do patrão às do usuário […]; aos 100 mil pequenos agricultores, que vivem e morrem trabalhando uma terra que não é dela, contemplando-a sempre tristemente como Moisés a terra prometida […]; os 30 mil mestres e professores […]; os 20 mil pequenos comerciantes afligidos de dívidas […]; os 10 mil profissionais jovens […] desejosos de luta e cheios de esperança […] Esse é o povo, que sofre todas as desgraças e é, portanto, capaz de pelejar com toda a coragem” (Castro apud Dussel, 2007a: 92).

Referências e sugestões de leitura

Dussel, Enrique (2007a). 20 Teses de política. Buenos Aires : Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo : Expressão Popular.

Como citar

Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.

Autor

Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.

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