O cotidiano na utopia é também uma categoria política. Se mistura ao povo. São os locais onde a agente, a nossa gente vive. E que deixa de ser quando é controlado, tomado, formalizado. E que passa a ser quando ocupa espaços, promove diálogos, abre brechas, permite articular possibilidades, construir consciência sobre o real em momentos ordinários. O cotidiano, mais uma vez, é um espaço privilegiado da utopia, de conversas, de encontros, de liberdades, de articulações, de disputas, de ausências, insurgências, emergências… E porque é do real ao nosso redor que a gente “detecta as mediações para a vida” (Dussel, 2009: 448), a utopia, paradoxalmente, é a possibilidade do presente: “o que é importante nela não é o que diz sobre o futuro, mas a arqueologia virtual do presente que a torna possível” (Santos, 2013: 281).
Da arqueologia do ainda não feito, das potencialidades latentes, das emergências ainda encobertas, veladas; das insurgências irrompendo as superfícies; das potências fazedoras do inédito-viável, daquilo que ainda não foi realizado, mas que é possível realizar; dos sonhos despertos ainda sem chão, sem suporte, sem apoio; do oculto oprimido, esquecido, marginalizado, consciente, mas ainda sem forças. Para Bloch, o realmente possível “é tudo aquilo cujas condições ainda não estão integralmente reunidas na esfera do próprio objeto, seja porque elas ainda estão amadurecendo, seja sobretudo porque novas condições – ainda que mediadas pelas existentes – concorrem para ocorrência de um novo real” ([1959] 2005: 194). É a arqueologia também do “que não existe como (contra) parte integrante, mas silenciada do que existe” (Santos, 2013: 281). Aquilo “que pertence à época” – a nós, ao cotidiano, à cultura -, “pelo modo como se aparta dela” (Santos, 2013: 281), pela forma como é desvalorizada, marginalizada, silenciada, desqualificada, despercebida. Pela forma como nos é arrancada.
Caminha, então, pelo presente oculto. Ouve as vozes silenciadas, compreende os quereres desfeitos, os sonhos encobertos, as dificuldades dadas pela distância entre os limites da vida humana e as (im)possibilidades impostas pela organização política dos homens. Parte daí. Encontra no mundo aquilo que ajuda o mundo: “O ato contra a angústia diante da vida e as maquinações do medo é a atividade contra os seus criadores, em grande parte bem identificáveis, e ele procura no próprio mundo aquilo que ajuda o mundo – isto é encontrável”, escreve Bloch ([1959] 2005: 14). E isto é encontrável porque “para além das instituições existentes”, escreve Mumford, “todas as comunidades possuem um reservatório de potencialidades, em parte enraizado no passado, vivo, mas escondido, em parte brotando de novos cruzamentos e mutações, que abrem caminho a novos desenvolvimentos” (Mumford, [1922] 2007: 14). Aqui também se encontra uma das funções pragmáticas dos ideais, das utopias: “nenhuma sociedade estará inteiramente consciente da sua natureza intrínseca ou das suas perspectivas naturais se ignorar a existência de alternativas ao caminho que optou por percorrer, bem como dos muitos outros objetivos para além dos visíveis” (Mumford, [1922] 2007: 14).
E é também encontrável porque o ser humano resiste, cria, usa de todas as suas forças para permanecer em vida. Desafia. Não haveria esperança, não haveria sentido falar em utopia, nada mais faria sentido se assim fosse, se o dito impossível fosse fato. Se a fome estivesse fadada a permanecer faminta e se não houvesse ninguém nos mostrando, com fatos, que é possível saciá-la. Se nascêssemos racistas e, se viver imbecis fosse a nossa sina; e se não houvessem Mbyas Guaranis, Quilombolas, nos oferecendo educações, ações, conhecimentos, saberes que têm resistido à perversidade e conquistado autonomias diante das metrópoles brancas, coloniais, suas utopias históricas e contemporâneas da morte. Se a violência fosse a nossa única opção. Se a mulher como que por obra divina tivesse que viver subjugada ao homem e se não houvessem mulheres nos oferecendo educações, ações, autonomias diante da perversidade patriarcal. Se o capitalismo, esse Deus, fosse a expressão da essência humana, e se como resultado da própria evolução natural da humanidade se tratasse; e se não houvessem outros mercados, produções, gentes, realizando outras economias obtendo justiça, com pretensão de justiça. Se estivéssemos fadados a viver em meio a tamanha perversidade, se assim fosse, a existência humana não faria o menor sentido à própria existência humana porque, “ali, onde nada mais se possa e nada mais seja possível, a vida terá cessado” (Bloch apud Dussel, 1998: 462). Resiste, pois. Persiste.
“As resistências, tal como o poder, não acontecem numa direção única, nem são acontecimentos que ocorrem em alternância simétrica” (Wadi, 2017: 174). Elas são, no cotidiano, “uma sequência de situações paradoxais de transformação sem ruptura, transformações na continuidade, de assimilação recíproca de múltiplos segmentos do ser vivo” (Mbembe, 2017: 52). De continuidades de momentos diversos e de diversos pontos de persistências, cansaços, brechas e fraturas. De vivências movidas também por silêncios aparentes, por vozes que não se ouvem, mas que interferem. Por experiências tantas mais ou menos visíveis e forças que não se veem. Por vozes que até então silenciadas se fizeram ouvir. Escuta! É que “o abismo insondável, retraindo-se, cristalizou num ponto; e esse ponto, adquirindo voz, confessou o abismo, revelou o insondável”: gritos.
Gritos intensos que nem sempre se podem ouvir, mas que nascem, como escreve Catherine Walsh, da indignação, da raiva, da dor e do horror (2017b: 23)[1]. Que não são reações e expressões de sustos apenas, mas também mecanismos, estratégias e ações de luta, rebeldia, resistência, desobediência, insurgência, ruptura e transgressão diante da condição imposta de silenciamento e do intento constante em silenciar (Walsh, 2017b: 30). De gritos “de, desde, com, por e para a vida, por e para o re-existir, re-viver e com-viver com justiça e dignidade”. Que “reúnem silêncios e silenciamentos, e que reclamam subjetividades e conhecimentos negados, corpos, território e natureza violados e despojados” (Walsh, 2017b: 38). Escuta. Ouve esse lugar de gritos, vê as fissuras, as fraturas, plantas, matos, ervas daninhas, goiabeiras que brotam em uma pequena fresta no asfalto; de vivências que insurgem em meio a esse mundo que absolutamente não é o nosso, fundindo brechas que as permitem respirar, viver, se entrelaçar entre elas; de gritos que são vozes, que são falas, vidas, experiências, vivências que constroem sobrevivências; de biografias e autobiografias que encarnam sonhos, esperanças; de “matéria infinita – forças infinitas, infinitamente caminhando”.
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Trecho do primeiro capítulo da Tese A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo. Knob, Tiago Miguel. Tese de Doutoramento em Pós-Colonialismos e Cidadania Global, apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Acesse em Estudo Geral Universidade de Coimbra
De 2013 a 2019 o caminhar que instituiu o OPOCA foi conteúdo de pesquisa acadêmica que resultou na tese de doutorado A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano, realizada no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Como parte das ações da Organização, a pesquisa desenvolveu a metodologia e a pedagogia de ação do OPOCA, realizou uma crítica ética à realidade são-miguelense e instituiu o Observatório Popular Cidade do Anjo como uma alternativa factível e real às violências e desigualdades sociais, se integrando a redes de organizações nacionais e internacionais que atuam em suas distintas frentes pela afirmação da dignidade humana.
Notas
[1] As citações de Catherine Walsh foram traduzidas do espanhol por mim.
Referências e sugestões de leitura
Bloch, Ernst (2005 [1959]). O Princípio Esperança. Volume 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro : EdUERJ : Contraponto.
Dussel, Enrique (1998). Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes.
Dussel, Enrique (2009). Política de la Liberación: arquitectónica. Volumen 2. Madrid : Trotta.
Mbembe, Achille (2017). Políticas da Inimizade. Trad. Marta Lança, Lisboa : Antígona.
Mumford, Lewis (2007 [1922]). História das Utopias. Trad. Isabel Botto. Lisboa : Antígona.
Santos, Boaventura de Sousa (2013). Pela mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade. Coimbra : Almedina.
Wadi, Shahd (2017). Corpos na Trouxa. Coimbra : Almedina.
Walsh, Catherine (2017b) ¿Interculturalidad y (de)colonialidad? Gritos, rietas y siembras desde Abya Yala. Disponível em http://catherinewalsh.blogspot.com/2017/10/interculturalidad-y-decolonialidad.html. Acessado pela última vez em 12/06/2018.
Como citar
Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colonial das gentes do cotidiano. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Autor
Tiago Miguel Knob é Coordenador Executivo do OPOCA. Vice-Presidente do Instituto Homo Serviens (SC). Doutor pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, Portugal, e Mestre em Ciências pela USP, São Paulo. Pesquisador Convidado do PerMaré, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa, Portugal.